quinta-feira, 4 de agosto de 2016

As ruínas circulares - Jorge Luís Borges


Ninguém  o  viu  desembarcar  na  unânime  noite,  ninguém  viu  a  canoa  de  bambu sumindo-se  no lodo  sagrado,  mas  em  poucos  dias  ninguém  ignorava  que  o  homem taciturno vinha do Sul e que sua pátria era uma das infinitas aldeias que estão águas acima, no flanco violento da montanha, onde o idioma zenda não está contaminado de grego e onde é infreqüente a lepra. O certo é que o homem cinza beijou o lodo, subiu as encostas da  margem  sem  afastar  (provavelmente,  sem  sentir) os  arbustos  cortantes  que  lhe dilaceravam as carnes e se arrastou, aturdido e ensangüentado, até o recinto circular que coroa um tigre ou cavalo de pedra, que teve certa vez a cor do fogo e agora a da cinza. Essa  arena  é  um  templo  que  os  devoraram  incêndios  antigos,  que  a  selva  palúdica profanou  e  cujo  deus  não  recebe  honra  dos  homens.  O  forasteiro  estendeu-se  sob  o pedestal. Despertou-o  o  sol  alto.  Comprovou  sem  assombro  que  as  feridas  tinham cicatrizado;  fechou os olhos  pálidos  e  dormiu,  não  por  fraqueza  da  carne,  mas  por determinação da vontade. Sabia que esse templo era o lugar que requeria seu invencível propósito; sabia que as árvores incessantes não tinham conseguido estrangular, rio abaixo, as ruínas de outro templo propício, também de deuses incendiados e mortos; sabia que sua imediata obrigação era o sonho. Por volta da meia-noite, despertou-o o grito inconsolável de um pássaro. Rastros de pés descalços, alguns figos e um cântaro advertiram-no de que os homens da região haviam espiado com respeito seu sono e solicitavam seu amparo ou temiam  sua  magia.  Sentiu  o  frio  do  medo  e  procurou  na  muralha  dilapidada  um nicho sepulcral e se cobriu com folhas desconhecidas. 
O propósito que o guiava não era impossível, ainda que sobrenatural. Queria sonhar um  homem: queria  sonhá-lo  com  integridade  minuciosa  e  impô-lo  à  realidade.  Esse projeto mágico esgotara o espaço inteiro de sua alma; se alguém lhe tivesse perguntado o próprio  nome  ou  qualquer  aspecto de  sua  vida  anterior,  não  teria  acertado  na  resposta. Convinha-lhe o templo inabitado e despedaçado, porque era um mínimo de mundo visível; a  proximidade  dos  lenhadores  também, porque  estes  se  encarregavam  de  suprir  suas necessidades frugais. O arroz e as frutas de seu tributo eram pábulo suficiente para seu corpo, consagrado à única tarefa de dormir e sonhar. 
No começo, os sonhos eram caóticos; pouco depois, foram de natureza dialética. O forasteiro sonhava-se no centro de um anfiteatro circular que era de certo modo o templo incendiado:  nuvens  de  alunos  taciturnos  esgotavam  os  degraus;  os  rostos  dos  últimos pendiam  a  muitos  séculos  de  distância  e  a  uma  altura  estelar,  mas  eram  absolutamente precisos.  O  homem  ditava-lhes  lições  de  anatomia,  de  cosmografia,  de  magia:  as fisionomias escutavam com ansiedade e tentavam responder com entendimento, como se adivinhassem a importância daquele exame, que redimiria um deles de sua condição de vã aparência e o interpolaria no mundo real. O homem, no sonho e na vigília, considerava as respostas de seus fantasmas, não se deixava iludir pelos impostores, adivinhava em certas perplexidades uma inteligência crescente. Procurava uma alma que merecesse participar do universo. 
Depois de nove ou dez noites, compreendeu, com alguma amargura, que não podia esperar nada daqueles alunos que aceitavam passivamente sua doutrina e sim daqueles que arriscavam, às vezes, uma contradição razoável. Os primeiros, embora dignos de amor e afeição, não podiam ascender a indivíduos; os últimos preexistiam um pouco mais. Uma tarde  (agora  também  as  tardes  eram  tributárias  do  sonho,  agora  velava  apenas  algumas horas no amanhecer) diplomou para sempre o vasto colégio ilusório e ficou com um único aluno. Era um rapaz taciturno, citrino, indócil às vezes, de feições afiladas que repetiam as de  seu  sonhador.  Não  o  desconcertou  por  muito  tempo  a  repentina  eliminação  dos condiscípulos;  seu  progresso,  ao  fim  de  poucas  lições  particulares,  pôde  maravilhar  o mestre. Não obstante, a catástrofe sobreveio. O homem, um dia, emergiu do sonho como de  um  deserto  viscoso,  olhou  a  vã  luz  da  tarde  que,  à  primeira  vista,  confundiu com  a aurora e compreendeu que não sonhara. Toda essa noite e todo o dia, a intolerável lucidez da insônia se abateu contra ele. Quis explorar a selva, extenuar-se; somente entre a cicuta conseguiu  algumas  rajadas  de  sonho  débil,  venuladas  fugazmente  de  visões  de  tipo rudimentar: inaproveitáveis. Quis congregar o colégio e apenas havia articulado algumas breves  palavras  de  exortação,  este  se  deformou,  se  apagou.  Na  quase  perpétua  vigília, lágrimas de ira queimavam-lhe os velhos olhos. 
 Compreendeu que o empenho de modelar a matéria incoerente e vertiginosa de que se compõem os sonhos é o mais árduo que pode empreender um varão, ainda que penetre em todos os enigmas da ordem superior e da inferior: muito mais árduo que tecer uma corda de areia ou amoedar o vento sem rosto. Compreendeu que um fracasso inicial era inevitável. Jurou esquecer a enorme alucinação que o desviara no começo e procurou outro método de trabalho. Antes de exercitá-lo, dedicou um mês à reposição das forças que o delírio  havia  desperdiçado.  Abandonou  toda  premeditação  de  sonhar  e  quase imediatamente conseguiu dormir uma parte razoável do dia. As raras vezes que sonhou, durante esse período, não reparou nos sonhos. Para retomar a tarefa, esperou que o disco da  lua  fosse  perfeito.  Depois,  à  tarde,  purificou-se  nas  águas  do  rio,  adorou  os  deuses planetários,  pronunciou  as  sílabas  lícitas  de  um  nome  poderoso  e  dormiu.  Quase  de imediato, sonhou com um coração que pulsava. 
Sonhou-o ativo, caloroso, secreto, do tamanho de um punho fechado, cor grená na penumbra de um corpo humano, ainda sem rosto ou sexo; com minucioso amor sonhou-o,  durante catorze lúcidas noites. Cada noite, percebia-o com maior evidência. Não o tocava: limitava-se a testemunhá-lo, observá-lo, talvez corrigi-lo com o olhar. Percebia-o, vivia-o, de muitas distâncias e muitos ângulos. Na décima quarta noite, roçou a artéria pulmonar com  o  indicador  e  depois  todo  o  coração,  por  fora  e  por  dentro.  O  exame  o  satisfez. Deliberadamente  não  sonhou  durante  uma  noite:  depois  retomou  o  coração,  invocou  o nome de um planeta e empreendeu a visão de outro dos órgãos principais. Antes de um ano chegou ao esqueleto, às pálpebras. O cabelo inumerável foi talvez a tarefa mais difícil. Sonhou um homem inteiro, um moço, mas este não se incorporava nem falava, nem podia abrir os olhos. Noite após noite, o homem sonhava-o adormecido. 
Nas  cosmogonias  gnósticas,  os  demiurgos  amassam  um  vermelho  Adão  que  não consegue pôr-se de pé; tão inábil e rude e elementar como esse Adão de pó era o Adão de sonho que as noites do mago tinham fabricado. Uma tarde, o homem quase destruiu toda a sua  obra,  mas  se  arrependeu.  (Mais  lhe  teria  valido  destruí-la.)  Esgotados  os  votos  aos numes da terra e do rio, arrojou-se aos pés da efígie que talvez fosse um tigre e talvez um potro,  e  implorou  seu  desconhecido  socorro.  Nesse  crepúsculo,  sonhou  com  a  estátua. Sonhou-a viva, trêmula: não era um atroz bastardo de tigre e potro, mas simultaneamente essas  duas  criaturas  veementes  e  também  um  touro,  uma  rosa,  uma  tempestade.  Esse múltiplo deus revelou-lhe que seu nome terrenal era Fogo, que nesse templo circular (e em outros  iguais)  rendiam-lhe  sacrifícios  e  culto  e  que  magicamente  animaria  o  fantasma sonhado,  de  tal  sorte  que  todas  as  criaturas,  exceto  o  próprio  Fogo  e  o  sonhador, julgassem-no um homem de carne e osso. Ordenou-lhe que uma vez instruído nos ritos, remetesse-o ao outro templo despedaçado, cujas pirâmides persistem águas abaixo, para que alguma voz o glorificasse naquele edifício deserto. No sonho do homem que sonhava, o sonhado despertou. 
 O mago executou essas ordens. Consagrou um prazo (que finalmente abrangeu dois anos) para descobrir-lhe os arcanos do universo e do culto do fogo. Intimamente, doía-lhe separar-se dele. Com o pretexto da necessidade pedagógica, dilatava a cada dia as horas dedicadas  ao  sonho.  Também  refez  o  ombro  direito,  talvez  deficiente.  Às  vezes, inquietava-o uma impressão de que tudo isso havia acontecido... Em geral, seus dias eram felizes; ao fechar os olhos pensava: "Agora estarei com meu filho". Ou, mais raramente: "O filho que gerei me espera e não existirá se eu não for". 
Gradualmente,  foi  acostumando-o  à  realidade.  Certa  vez,  ordenou-lhe  que embandeirasse um cume longínquo. No outro dia, flamejava a bandeira no cume. Ensaiou outras experiências análogas, cada vez mais audazes. Compreendeu com certa amargura que seu filho estava pronto para nascer – e talvez impaciente. Nessa noite beijou-o pela primeira vez e enviou-o ao outro templo cujos despojos branqueavam rio abaixo, a muitas léguas  de  inextricável  selva  e  pântano.  Antes  (para  que  nunca  soubesse  que  era  um fantasma, para que se acreditasse um homem como os outros) infundiu-lhe o esquecimento total de seus anos de aprendizagem. 
 Sua vitória e sua paz ficaram embaçadas de fastio. Nos crepúsculos da tarde e da alvorada,  prostrava-se  diante  da  figura  de  pedra,  talvez  imaginando  que  seu  filho  irreal executasse  idênticos  ritos,  em  outras  ruínas  circulares,  águas  abaixo;  de  noite,  não sonhava, ou sonhava como o fazem todos os homens. Percebia com certa palidez os sons e formas do universo: o filho ausente se nutria dessas diminuições de sua alma. O propósito de sua vida fora atingido; o homem persistiu numa espécie de êxtase. No fim de um tempo que  certos  narradores  de  sua  história  preferem  computar  em  anos  e  outros  em  lustros, despertaram-no dois remadores, à meia-noite: não pôde ver seus rostos, mas lhe falaram de um  homem  mágico,  num  templo  do  Norte,  capaz  de  pisar  o  fogo  e  não  queimar-se.  O mago lembrou-se bruscamente das palavras do deus. Recordou que de todas as criaturas que  compõem  o  orbe,  o  fogo  era  a  única  que  sabia  ser  seu filho  um  fantasma.  Essa lembrança,  apaziguadora  no  princípio,  acabou  por  atormentá-lo. Temeu que  seu  filho meditasse nesse privilégio anormal e descobrisse de algum modo sua condição de mero simulacro. Não ser um homem, ser a projeção do sonho de outro homem, que humilhação incomparável, que vertigem! A todo pai interessam os filhos que procriou (que permitiu) numa simples confusão ou felicidade; é natural que o mago temesse pelo futuro daquele filho, pensado entranha por entranha e traço por traço, em Mil e Uma Noites secretas.  
O final de suas cavilações foi brusco, mas o anunciaram alguns sinais. Primeiro (no término  de  uma  longa  seca)  uma  remota  nuvem  numa  colina,  leve  como  um  pássaro; depois,  para  o  Sul,  o  céu  que  tinha  a  cor  rosada  da  gengiva  dos  leopardos;  depois  a fumaceira que enferrujou o metal das noites; depois a fuga pânica das bestas. Porque se repetiu o acontecido faz muitos séculos. As ruínas do santuário do deus do fogo foram destruídas pelo fogo. Numa alvorada sem pássaros, o mago viu cingir-se contra os muros o incêndio  concêntrico.  Por  um  instante,  pensou  refugiar-se  nas  águas,  mas  depois compreendeu  que  a  morte  vinha  coroar  sua  velhice  e  absolvê-lo  de  seus  trabalhos. Caminhou contra as línguas de fogo. Estas não morderam sua carne, estas o acariciaram e o  inundaram  sem  calor  e  sem  combustão.  Com  alívio,  com  humilhação,  com  terror, compreendeu que ele também era uma aparência, que outro o estava sonhando. 

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