Conto de inverno
PERSONAGENS
Lotte Thörl
Peter Thörl
Maria Lutzer
Robert Lutzer
Ilse
Baldur
Patricia
Margareta
Em Berlim, no ano 2115.
Lotte Thörl, sozinha
LOTTE: ... E assim se passou mais um ano, estamos de novo em 19 de dezembro, esperando hóspedes para a festinha habitual. (Barulhos de louça e de móveis arrastados.) Eu não gosto particularmente dos hóspedes. Aliás, antigamente meu marido me chamava de “ursa maior”. Mas agora não: de uns anos para cá ele mudou, tornou-se uma pessoa séria e tediosa. A ursa menor seria nossa filha Margareta: coitadinha! Só tem quatro anos. (Passos, barulhos.) Não que eu seja uma mulher esquiva e selvagem: simplesmente me irrita uma recepção com mais de cinco ou seis convidados. No final é uma grande bagunça, discursos sem pé nem cabeça, e eu tenho a triste impressão de que ninguém percebe a minha presença, salvo quando circulo com as bandejas.
Além disso, não costumamos receber pessoas: só duas, três vezes por ano, e raramente aceitamos convites. É compreensível: ninguém pode oferecer aos próprios hóspedes o que nós oferecemos. Há quem tenha belos quadros, Renoir, Picasso, Caravaggio; há quem tenha um orangotango domesticado ou um cachorro ou um gato vivos; há quem disponha de um bar com os estupefacientes mais avançados; mas nóstemos Patricia... (suspiro) Patricia!
(Campainha.) Os primeiros chegaram. (Bate numa porta.) Venha, Peter, estou aqui.
Lotte e Peter Thörl; Maria e Robert Lutzer.
Todos se cumprimentam.
ROBERT: Boa noite, Lotte; boa noite, Peter. Que tempo horroroso! Há quantos meses não vemos o sol?
PETER: E há quanto tempo não vemos vocês?
LOTTE: Oh, Maria! Você está mais jovem que nunca. E que casaco maravilhoso! Presente do marido?
ROBERT: Já não são uma novidade. É um marciano prateado: parece que os russos importaram uma grande quantidade deles; podem ser encontrados no setor oriental a preços bem razoáveis. No mercado negro, é claro: é uma mercadoria controlada.
PETER: Eu te invejo e te admiro, Robert. Conheço poucos berlinenses que não se queixam da situação, mas não conheço nenhum que se safe com a sua desenvoltura. Cada vez mais me convenço de que o amor verdadeiro e apaixonado pelo dinheiro é uma virtude que não se aprende, mas se herda com o sangue.
MARIA: Quantas flores! Lotte, estou sentindo um maravilhoso perfume de aniversário. Parabéns, Lotte!
LOTTE (aos dois maridos): Maria é incorrigível. Mas se console, Robert, não foi o casamento que a deixou assim, tão deliciosamente distraída. Ela já era assim na escola: nós a chamávamos de “a desmiolada de Colônia”, e convidávamos amigos e amigas de outras turmas para assistir às suas provas orais. (Com severidade burlesca)
Sra. Lutzer, tenha mais atenção. É assim que prepara as lições de história? Hoje não é o meu aniversário: hoje é 19 de dezembro, aniversário de Patricia.
MARIA: Oh, me desculpe, querida. Tenho realmente uma memória de galinha. Então hoje à noite haverá o descongelamento? Que beleza!
PETER: Claro, como todos os anos. Vamos apenas esperar a chegada de Ilse e Baldur. (Campainha.) Aqui estão: atrasados, como sempre.
LOTTE: Seja mais compreensivo, Peter! Você já viu um casal de namorados chegar na hora marcada?
Ilse e Baldur entram. Cumprimentos de ambas as partes.
Lotte e Peter; Maria e Robert; Ilse e Baldur.
PETER: Boa noite, Ilse; boa noite, Baldur. É um privilégio vê-los de novo: vocês estão a tal ponto apaixonados um pelo outro que os velhos amigos não existem mais para vocês.
BALDUR: Por favor, nos perdoem. Estamos nadando contra a burocracia: o meu doutorado, os papéis para a prefeitura, o salvo-conduto para Ilse, o beneplácito do partido; o visto do prefeito já chegou, mas ainda estamos esperando o de Washington e o de Moscou, principalmente o de Pequim, que é o mais difícil de ser obtido. É de deixar louco. Há séculos não vemos ninguém: ficamos pálidos e feios, temos vergonha de exibir os nossos rostos por aí.
ILSE: Chegamos tarde, não é? Somos mesmo dois cafonas. Mas por que não começaram sem a gente?
PETER: Nunca faríamos isso. O momento do despertar é o mais interessante: ela é tão graciosa quando abre os olhos!
ROBERT: Vamos, Peter, é melhor começarmos, senão terminaremos de madrugada. Vá pegar o manual: e não faça como naquela vez, a primeira, acho (quantos anos atrás?), quando você errou um procedimento e quase estragou tudo.
PETER (incomodado): Estou com o manual aqui no bolso; mas já sei as instruções de cor. Vamos para a outra sala? (Rumor de cadeiras arrastadas e de passos; comentários; murmúrios de impaciência.) ... Um: interromper o circuito de azoto e o de gás inerte. (Executa: rangido, sopro abafado, duas vezes.) Dois: acionar a bomba, o esterilizador Wroblewski e o microfiltro. (Barulho da bomba, como de uma motocicleta distante; alguns segundos de espera.) Três: abrir o circuito de oxigênio (começa um chiado cada vez mais agudo) e girar lentamente a válvula até que o indicador atinja a marca de vinte e um por cento...
ROBERT: Não, Peter, vinte e quatro por cento: no manual está escrito vinte equatro por cento. Se eu fosse você, colocaria os óculos. Não leve a mal, temos a mesma idade, mas eu colocaria os óculos, pelo menos em certas ocasiões.
PETER (de mau humor): Sim, você tem razão, vinte e quatro por cento. Mas tanto faz, vinte e um ou vinte e quatro por cento: já fiz isso outras vezes. Quatro: deslocar gradualmente o termostato, elevando a temperatura à velocidade de cerca de dois graus por minuto. (Ouve-se a batida de um metrônomo.) Agora, silêncio, por favor. Ou pelo menos não falem tão alto.
ILSE (sussurrando): Ela sofre durante o descongelamento?
PETER (voz baixa): Não, em tese, não. Mas é por isso que é necessário fazer tudo certo, seguir exatamente as prescrições. Mesmo durante a temporada na geladeira, é indispensável que a temperatura seja mantida dentro de limites rigorosos.
ROBERT: Certo: basta qualquer grau a menos e adeus, li que alguma coisa se coagula nos centros nervosos, e aí eles não acordam mais, ou acordam deficientes e sem memória; já se a temperatura estiver um pouco acima do padrão, eles retomam a consciência, mas sofrem terrivelmente. Imagine que horror: sentir-se inteiramente congelado, mãos, pés, sangue, coração, cérebro, e não poder mover um dedo, nãopoder bater as pálpebras, não poder emitir um som e pedir socorro!
ILSE: Terrível! É preciso coragem e muita fé. Quero dizer, fé nos termostatos. Eu, por mim, sou louca por esportes de inverno, mas sinceramente não trocaria de lugar com Patricia nem por todo o ouro do mundo. Soube até que ela já estaria morta se, quando as experiências começaram, não lhe tivessem injetado aquele... como se diz... an-ti-con-ge-lante. Sim, aquele mesmo que no inverno colocamos nos radiadores dos carros. Mas é lógico: senão, o sangue congelaria. Não é verdade, sr. Thörl?
PETER (evasivo): Dizem tantas coisas...
ILSE (pensativa): Não me surpreende que tão poucos tenham se submetido a isso. Palavra, não me surpreende. Me disseram que ela é linda: é verdade?
ROBERT: Esplêndida. No ano passado eu a vi de perto: uma carnação como hoje não existe mais. Vê-se que, apesar de tudo, o regime alimentar do século XX, ainda em grande parte natural, devia conter algum princípio vital que até hoje desconhecemos. Não que eu desconfie dos químicos: ao contrário, tenho o maior respeito e estima por eles. Mas acho que são... como dizer... pretensiosos, sim, pretensiosos. Na minha opinião, há sempre algo a descobrir, ainda que secundário.
LOTTE (de má vontade): Sim, ela de fato é graciosa. De resto, é a beleza da idade. Tem uma pele de recém-nascida: para mim, é o efeito do supercongelamento. Não tem uma cor natural, é muito rosada e muito branca, parece... sim, parece um sorvete, desculpem a comparação. Até os cabelos são demasiado louros. Para dizer a verdade, me dá a impressão de ser um pouco passada, faisandée... porém é bela, ninguém pode negar. Também é muito culta, educadíssima, inteligentíssima, audaciosa, superlativa em todos os aspectos, e por isso me dá medo, me incomoda, me deixa complexada. (Falou mais do que devia; cala-se, embaraçada, e então continua,com esforço) ... mas mesmo assim eu gosto muito dela. Especialmente quando está congelada. Silêncio. O metrônomo continua batendo.
ILSE (sussurrando): É possível olhar pela janelinha da geladeira?
PETER (voz baixa): Claro, mas não faça barulho. Já estamos a menos dez, e uma emoção repentina poderia ser prejudicial a ela.
ILSE: Oh! É encantadora! Parece falsa... E é... quero dizer, é mesmo da época?
BALDUR (à parte): Não faça perguntas tolas!
ILSE (à parte): Não é uma pergunta tola. Queria saber quantos anos tem: parece tão jovem, e no entanto dizem que é... antiga.
PETER (que ouviu): É facilmente explicável, senhorita. Patricia tem cento e sessenta e três anos, dos quais vinte e três de vida normal e cento e quarenta de hibernação. Mas, me desculpem, eu pensei que vocês já soubessem dessa história. A vocês que já sabem, Maria e Robert, desculpem a repetição: tentarei explicar rapidamente o caso ao nosso querido casal.
Vocês devem saber que a técnica de hibernação foi iniciada em meados do século XX, basicamente com objetivos clínicos e cirúrgicos. Mas só em 1970 chegou-se a congelamentos realmente inócuos e indolores, portanto aptos a conservar por longo tempo organismos complexos. Com isso, um sonho se tornou realidade: parecia possível “enviar” um homem ao futuro. Mas a que distância no futuro? Existiriam limites? E a que preço? Justamente para instituir um controle para uso das gerações vindouras, que seríamos nós, foi aberto aqui em Berlim, em 1975, um concurso para voluntários.
BALDUR: E Patricia é um desses?
PETER: Exatamente. Pelo que sabemos de seu registro pessoal, que está na geladeira com ela, trata-se da primeira classificada. Possuía todo os requisitos, coração, pulmões, rins etc., tudo em perfeito estado; um sistema nervoso de piloto espacial; um caráter imperturbável e decidido, uma emotividade ilimitada, e finalmente uma boa cultura e inteligência. Não que inteligência e cultura sejam indispensáveis para suportar a hibernação, mas, em igualdade de condições, deram preferência a indivíduos de alto nível intelectual, por evidentes razões de prestígio em relação a nós e aos nossos sucessores.
BALDUR: Então Patricia dormiu de 1975 até hoje?
PETER: Sim, com breves interrupções. O programa foi acertado entre ela e a comissão, cujo presidente era Hugo Thörl, meu célebre antepassado...
ILSE: Ele é aquele famoso, que a gente estuda na escola?
PETER: Ele mesmo, senhorita, o descobridor do quarto princípio da termodinâmica. O programa previa um despertar de algumas horas, a cada ano,sempre em 19 de dezembro, dia do seu aniversário...
ILSE: Que idéia singela!
PETER: ... e também em circunstâncias de especial interesse, como importantes expedições planetárias, crimes e processos célebres, casamentos de soberanos ou de musas do cinema, encontros internacionais de beisebol, cataclismos da natureza e fatos semelhantes: enfim, tudo o que mereça ser visto e preservado para um futuro distante. Além disso, naturalmente, sempre que falta luz... e duas vezes por ano para exames médicos. Pelo que consta dos registros, a soma dos intervalos de vigília, de 1975 até hoje, é de cerca de trezentos dias.
BALDUR: ... e, me desculpe a pergunta, como Patricia se tornou hóspede de sua casa? Está aqui há muito tempo? PETER (embaraçado): Patricia é... Patricia faz parte, por assim dizer, da linha
hereditária da nossa família. É uma longa história, em parte obscura. Sabe, são coisas de outros tempos, já se passou um século e meio... pode-se considerar um milagre que, com todas as insurreições, bloqueios, ocupações, repressões e saques que ocorreram em Berlim, Patricia tenha sido transmitida de pai para filho, ilesa, sem nunca ter deixado a nossa casa. De certo modo, representa a continuidade familiar: é... um símbolo.
BALDUR: ... mas como...
PETER: ... como Patricia passou a fazer parte da nossa família? Bem, por estranho que pareça, não se encontrou nada escrito sobre esse ponto, há apenas uma tradição oral que Patricia se recusa a confirmar ou a desmentir. Parece que, no início da experiência, Patricia foi alojada na Universidade, precisamente na câmara frigorífica do Instituto de Anatomia, e que por volta de 2000 ela teria tido uma violenta discussão com o corpo acadêmico. Diz-se que aquela situação não lhe agradava porque não preservava a sua intimidade, e também porque ela não queria estar ombro a ombro com cadáveres destinados à dissecação. Parece que numa das vigílias ela teria declarado formalmente que ou a colocavam num frigorífico privado, ou recorreria à corte; e que Hugo Thörl, naquela época decano da faculdade, para resolver a questão, teria generosamente se oferecido para hospedá-la.
ILSE: Que mulher estranha! Mas, me desculpem, ela já não tem o bastante? Quem a obriga? Além disso, não deve ser muito divertido ficar em letargia o ano inteiro e acordar apenas por um ou dois dias, e não quando se quer, mas quando algum outro decide. Para mim, seria um tédio mortal.
PETER: Engano seu, Ilse. Ao contrário, nunca houve uma existência mais intensa que a de Patricia. A vida dela está concentrada: só contém o essencial, não contém nada que não mereça ser vivido. Quanto ao tempo passado na geladeira, ele passa para nós, não para ela. Não deixa marcas nela, nem na memória nem nos tecidos. Ela não envelhece, exceto nas horas de vigília. Do primeiro aniversário na geladeira, que foi o vigésimo quarto dela, até hoje, em cento e quarenta anos, envelheceu menos de um ano. Do ano passado até agora, para ela transcorreram apenas trinta horas.
BALDUR: Três ou quatro horas no aniversário, e o resto?
PETER: Depois, vamos ver (calcula mentalmente), outras seis ou sete para o dentista, para experimentar uma roupa, para ir com Lotte comprar um par de sapatos...
ILSE: É justo. É preciso que ela pelo menos acompanhe a moda.
PETER: ... e já estamos em dez. Seis horas para a estréia de Tristão na Ópera, e são dezesseis. Outras seis para dois exames médicos gerais...
ILSE: Como, ela esteve doente? É claro, essas mudanças de temperatura não fazem bem a ninguém. Dizer que nos habituamos é mentira!
PETER: Não, não, está muito bem de saúde. São os fisiologistas do Centro de Estudos: regulares como a cobrança das taxas, eles vêm aqui duas vezes por ano, com todos os seus apetrechos, a descongelam, reviram-na de todos os lados, radioscopias, testes psicológicos, eletrocardiogramas, exames de sangue... depois vão embora, sem dizer palavra. Segredo profissional: nenhum comentário.
BALDUR: Mas então não é por interesse científico que vocês a têm em casa?
PETER (constrangido): Não... não só. Sabe, eu trabalho com outras coisas... Não fui feito para o ambiente acadêmico; o fato é que nos afeiçoamos a Patricia. E ela se afeiçoou a nós, como uma filha. Não nos deixaria por nada.
BALDUR: Mas então por que os intervalos de vigília são tão raros e breves?
PETER: Isso é óbvio: Patricia pretende chegar em plena juventude aos próximos séculos, por isso deve fazer economia. Mas você terá a oportunidade de ouvir dela mesma essas coisas e outras mais: pronto, chegamos a trinta e cinco graus, está abrindo os olhos. Rápido, querida, abra a porta e corte o invólucro; começou a respirar. Estalo e rangido da porta; barulho de tesouras ou de corta-papéis.
BALDUR: Que invólucro?
PETER: Um invólucro de polietileno, hermético, muito aderente. Serve para reduzir as perdas por evaporação. O metrônomo, que se ouvia ao fundo em todas as pausas, bate cada vez mais forte, e então pára de repente. Soa três vezes uma sirena, nitidamente. Silêncio completo por alguns segundos.
MARGARETA (do outro cômodo): Mamãe! Tia Patricia já acordou? O que ela me trouxe neste ano?
LOTTE: O que você queria que ela te trouxesse? O mesmo cubinho de gelo!
Além disso, é o aniversário dela, não o seu. Agora fique quieta. Durma que já é tarde.Novo silêncio. Ouve-se um suspiro, um bocejo, um espirro escandaloso. Depois, sem transição, Patricia começa a falar.
PATRICIA (voz amaneirada, arrastada, nasal): Boa noite, bom dia. Que horas são? Quanta gente! Que dia é hoje? Que ano?
PETER: 19 de dezembro de 2115. Não lembra? É o seu aniversário. Parabéns, Patricia!
TODOS: Parabéns, Patricia! Vozes de todos, misturadas. Ouvem-se pedaços de frases: “Como é bonita!”
“Senhorita, me perdoe, gostaria de fazer algumas perguntas...”
“Depois, depois! Imaginem como está cansada!”
“Sonha quando está na geladeira? Que tipo de sonho?”
“Queria sua opinião sobre a...”
ILSE: Será que conheceu Napoleão e Hitler?
BALDUR: Claro que não! O que você está dizendo? Foram dois séculos antes!
LOTTE (interrompe com decisão): Com licença, por favor. Deixem-me passar, é preciso que alguém pense nas coisas práticas. Patricia talvez necessite de algo... (para Patricia) uma xícara de chá quente? Ou talvez algo mais nutritivo? Uma pequena bisteca? Precisa trocar de roupa, tomar um ar?
PATRICIA: Chá, obrigada. Como você é amável, Lotte! Não, por enquanto não preciso de mais nada; você sabe, o descongelamento me deixa o estômago sempre embrulhado; quanto à bisteca, talvez mais tarde. Mas pequena, certo? Oh, Peter, como vai? Como vai sua ciática? Quais as novidades? Terminou a conferência de cúpula? Já começou a fazer frio? Ah, detesto o inverno, sou muito sujeita a resfriados... E você, Lotte? Parece ótima, até mais gordinha, talvez...
MARIA: ... É verdade, os anos passam para todos...
BALDUR: Passam para quase todos. Peter, me permita, ouvi tanto falar de Patricia, esperei tanto esse encontro, que agora gostaria... (Para Patricia) Senhorita, perdoe o meu entusiasmo, sei que o seu tempo é curto, mas gostaria que me descrevesse o nosso mundo visto com os seus olhos, que me falasse do seu passado, do seu século que nos deu tanto, de suas intenções para o futuro, que...
PATRICIA (com segurança): Não há nada de extraordinário, a gente se acostuma logo. Veja aqui o sr. Thörl, por exemplo, cinqüentão (maldosamente), cabelos ralos, barriguinha, pequenas dores de vez em quando. Pois bem, para mim, dois meses atrás, ele tinha vinte anos, escrevia poesias, estava para partir como voluntário com os Ulanos. Há três meses, tinha dez e me chamava de tia Patricia, chorava quando me congelavam e queria vir comigo para a geladeira. Não é verdade, Peter? Oh, me desculpe.
Cinco meses atrás, ele não só não havia nascido, mas não estava nem remotamente nos planos; havia o pai, o coronel, mas eu falo de quando ele era apenas tenente, estava na Quarta Legião de Mercenários, e a cada despertar ele tinha uma condecoração a mais e uns cabelos a menos. Ele me cortejava, daquele jeito engraçado que se usava na época: cortejou-me durante oito degelos... pode-se dizer que os Thörl têm isso no sangue, e nesse aspecto garanto que todos se assemelham.
Não têm... como dizer?... não têm uma idéia muito séria da relação de tutela... (a voz de Patricia prossegue em diminuendo) imagine que até o Ancestral, o Patriarca... Sobrepõe-se nítida e próxima a voz de Lotte, dirigida ao público.
LOTTE: Vocês ouviram? Essa moça é assim. Não tem... não tem papas na língua. É verdade que engordei, mas não estou numa geladeira. Ela não, ela não engorda, é eterna, incorruptível como o amianto, o diamante, o ouro. Mas gosta dos homens, especialmente dos maridos alheios. É uma arrogante eterna, uma sedutora incorruptível. Então apelo aos senhores: não tenho razões para detestá-la? (Suspiro) ... e ela agrada aos homens, mesmo com a venerável idade: isso é o pior. Vocês sabem como são os homens, Thörl ou não Thörl, e os intelectuais mais que os outros: dois suspiros, duas olhadas de um certo modo, duas lembranças de infância, e a armadilha dispara. Mais tarde, quem tem problemas é ela, claro — depois de um mês ou dois, acorda em meio a corações moles e meio passados... Não, não pensem que eu seja tão cega ou tão tola: também me dei conta de que, desta vez, ela mudou de tom com o meu marido, se tornou mordaz, cortante. Compreensível: há outro homem no horizonte. Mas vocês não assistiram às outras vezes em que despertou. Eu devia arrancar-lhe o couro! De resto... nunca consegui ter provas, dar um flagrante, mas vocês acham que tudo era feito às claras entre a jovem e o “tutor”? Em outras palavras (com força), acham que todos os descongelamentos foram regularmente registrados no livro pessoal? Eu não acho. Não tenho muita certeza disso. (Pausa. Conversa confusa, com barulho ao fundo.) Mas desta vez há novidades, como vocês mesmos notaram. É simples: há outro homem em vista, um homem mais jovem. Essa garotinha gosta de carne fresca! Basta ouvi-la: ela não demonstra saber o que quer? (Vozes.) Oh, não achei que já estivéssemos nesse ponto.
Das vozes do fundo emergem as falas de Baldur e de Patricia.
BALDUR: ... uma impressão que nunca experimentei. Nunca imaginei que fosse possível encontrar numa mesma pessoa o fascínio da eternidade e o da juventude. Sinto-me como se estivesse diante das pirâmides, e no entanto a senhora étão jovem e tão bela!
PATRICIA: Sim, senhor... Baldur, é assim que se chama, não é? Sim, Baldur. Mas os meus dons são três, e não dois. A eternidade, a juventude e a solidão. E este último é o preço a pagar pela audácia que tive.
BALDUR: Mas que experiência admirável! Passar voando quando os outros se arrastam pela vida, poder comparar p
essoalmente costumes, acontecimentos e heróis à distância de décadas e séculos! Qual historiador não a invejaria? E eu, que me proclamava cultor da história! (Com ímpeto repentino) Deixe-me ler o seu diário. PATRICIA: Como sabe... Quero dizer, o que o faz pensar que eu tenha um diário?
BALDUR: Então ele existe! Adivinhei!
PATRICIA: Sim, tenho. Faz parte do programa, mas ninguém sabe, nem mesmo Thörl. E ninguém pode lê-lo: está cifrado, e isso também faz parte do programa.
BALDUR: Se ninguém pode ler, serve pra quê?
PATRICIA: Para mim. Servirá mais tarde.
BALDUR: Mais tarde quando?
PATRICIA: Depois. Quando eu tiver chegado. Então espero publicá-lo: acho que não terei dificuldade em encontrar um editor, porque é um diário íntimo, um gênero que sempre vende. (Com voz sonhadora.) Penso em dedicar-me ao jornalismo,
sabe? E publicar os diários íntimos de todos os poderosos da Terra de minha época, Churchill, Stálin etc. Dá para ganhar um monte de dinheiro.
BALDUR: Mas como a senhora tem esses diários?
PATRICIA: Eu não os tenho. Escreverei eu mesma. Baseada em episódios autênticos, claro.
Pausa.
BALDUR: Patricia! (Outra pausa). Vamos ficar juntos!
PATRICIA (pensa um pouco; depois, muito friamente): Em termos abstratos, não seria uma má idéia. Mas não pense que basta entrar na geladeira: é preciso tomar injeções, seguir o curso preparatório... Não é tão simples. Além disso, nem todos têm um organismo apto... Sim, seria simpático ter um companheiro de viagem como o senhor, tão vivo, tão apaixonado, com um temperamento tão rico... Mas o senhor não está noivo?
BALDUR: Noivo? Estava.
PATRICIA: Até quando?
BALDUR: Até meia hora atrás: mas agora eu a encontrei, e tudo mudou.
PATRICIA: O senhor é um conquistador, um homem perigoso. (A voz de Patricia muda bruscamente, não é mais lamentosa e lânguida, mas nítida, enérgica,cortante.) De qualquer modo, se as coisas estão como o senhor diz, poderia nascer um acordo interessante.
BALDUR: Patricia! Por que adiar? Vamos partir: fuja comigo. Não no futuro: no presente.
PATRICIA (friamente): Estava pensando justamente nisso. Mas quando?
BALDUR: Agora, imediatamente. Atravessamos a sala e vamos.
PATRICIA: Nonsense. Logo todos estariam atrás de nós, e ele à frente. Veja: já está com suspeitas.
BALDUR: Então quando?
PATRICIA: Esta noite. Ouça bem. À meia-noite todos vão embora, e eles me recongelam e me recolocam na naftalina. É um processo mais rápido que o despertar, parecido com o dos anfíbios, o senhor sabe, é preciso sair da água devagar, mas a imersão pode ser rápida. Eles me metem na geladeira e ligam o compressor sem muita cerimônia: mas nas primeiras horas eu me mantenho bem macia, posso facilmente retornar à vida ativa.
BALDUR: E então?
PATRICIA: Então é simples. O senhor vai com os outros, acompanha a sua... aquela garota até a casa; depois volta aqui, entra no jardim, passa pela janela da cozinha...
BALDUR: ... e pronto! Mais duas horas, duas horas e o mundo será nosso! Mas, me diga, Patricia, não haverá arrependimentos? Não vai lamentar ter interrompido a sua corrida para os séculos futuros por minha causa?
PATRICIA: Veja, meu jovem, nós teremos tempo bastante para falar dessas belas coisas se o plano der certo. Mas antes é preciso que aconteça. Olhe, já estão indo; volte ao seu lugar, despeça-se civilizadamente e tente não fazer bobagens. Sabe, não é por nada, mas eu detestaria perder a ocasião.
Vozes dos convidados se despedindo, barulho de cadeiras sendo arrastadas.
Pedaços de frases:
“Até o próximo ano!”
“Boa noite, se posso dizer assim...”
“Vamos, Robert, não achei que fosse tão tarde.”
“Baldur, vamos, você terá a honra de me acompanhar.”
Silêncio. Depois a voz de Lotte, dirigida ao público.
LOTTE: ... e assim foram todos embora. Peter e eu ficamos sós, com Patricia, o que nunca é agradável para nenhum de nós três. Não digo por causa da antipatia que descrevi antes, de modo talvez um tanto impulsivo; não: é uma situação objetivamente desagradável, fria, falsa, cheia de constrangimento para todos. Falamos um pouco de uma coisa ou outra, depois nos despedimos, e Peter recolocou Patricia na geladeira. Os mesmos ruídos do descongelamento, mas invertidos e acelerados. Suspiro, bocejo. Rápido fechamento do invólucro. Metrônomo acionado, depois a bomba, os chiados etc. O metrônomo continua em movimento, cujo ritmo gradualmente se confunde com o som mais lento de um relógio de pêndulo. Soa uma hora, uma e meia, duas. Ouve-se o rumor de um carro que se aproxima, pára, a porta bate. Um cachorro late ao longe. Passos no jardim. Uma janela se abre. Passos no piso de madeira, que range cada vez mais próximo. Abre-se a porta da geladeira.
BALDUR (sussurrando): Patricia, sou eu!
PATRICIA (voz confusa e abafada): Crmdtimrs lm mvolmcrm!
BALDUR: Coooooomo?
PATRICIA (mais nitidamente): Corte o invólucro!
Ruído do corte.
BALDUR: Pronto. E agora? O que devo fazer? Por favor, me perdoe, mas não tenho prática, sabe, é a primeira vez que me acontece...
PATRICIA: Oh, o principal já foi feito, agora eu me viro sozinha. Só me ajude a sair daqui.
Passos. “Devagar”, “Psss”, “Por este lado”. Janela. Passos no jardim. A porta do carro. Baldur liga o motor.
BALDUR: Saímos, Patricia. Saímos do gelo, saímos do pesadelo. Parece que estou sonhando: há duas horas estou vivendo num sonho. Tenho medo de acordar.
PATRICIA (friamente): Levou sua noiva para casa?
BALDUR: Quem, Ilse? Acompanhei-a, sim. Inclusive me despedi dela.
PATRICIA: Como assim, se despediu? Definitivamente?
BALDUR: Sim, nem foi tão difícil quanto eu pensava, só uma rápida cena. Ela nem chorou.
Pausa, o carro está em movimento.
PATRICIA: Meu jovem, não me leve a mal. Acho que chegou o momento de uma explicação. Por favor, me entenda: eu precisava sair de lá de qualquer jeito.
BALDUR: ... e se tratava apenas disso? Sair?
PATRICIA: Só isso. Sair do frigorífico e sair da casa Thörl. Baldur, sinto que lhe devo uma confissão.
BALDUR: Uma confissão é pouco.
PATRICIA: É tudo o que eu posso lhe dar; e não é uma bela confissão. Estou realmente cansada: gelo e degelo, gelo e degelo, depois de muito tempo isso cansa.Além disso, há outra coisa.
BALDUR: Mais outra?
PATRICIA: Sim, mais outra. As visitas dele, de noite. A trinta e três graus, ainda morna, quando estava totalmente indefesa. E, como eu ficava calada — claro! —, ele talvez imaginasse...
BALDUR: Minha querida, como deve ter sido sofrido!
PATRICIA: Uma verdadeira tortura, não pode imaginar. Um tédio indizível.
Barulho do carro, que se afasta.
LOTTE: ... E assim termina esta história. Eu tinha percebido algo, e naquela noite ouvi barulhos estranhos. Mas fiquei calada: por que deveria dar o alarme?
Acho que assim será melhor para todos. Baldur, coitadinho, me contou tudo: parece que Patricia, além de tudo, ainda lhe pediu dinheiro; queria ir não sei aonde, reencontrar um colega que está nos Estados Unidos, também na geladeira, obviamente. Quanto a ele, Baldur, se reatará o noivado com Ilse ou não, isso não importa a ninguém, nem mesmo a Ilse. A geladeira foi vendida. Sobre Peter, veremos.