quinta-feira, 22 de setembro de 2016

A Bela Adormecida na geladeira - Primo Levi

Resultado de imagem para A Bela Adormecida na geladeira - Primo LeviA Bela Adormecida na geladeira
Conto de inverno

PERSONAGENS
Lotte Thörl
Peter Thörl
Maria Lutzer
Robert Lutzer
Ilse
Baldur
Patricia
Margareta
Em Berlim, no ano 2115.
Lotte Thörl, sozinha

LOTTE:  ...  E  assim  se  passou  mais  um  ano,  estamos  de  novo  em  19  de dezembro, esperando hóspedes para a festinha habitual. (Barulhos de louça e de móveis arrastados.)  Eu  não  gosto particularmente  dos  hóspedes.  Aliás,  antigamente  meu marido me chamava de “ursa maior”. Mas agora não: de uns anos para cá ele mudou, tornou-se  uma  pessoa  séria  e  tediosa.  A  ursa  menor seria  nossa  filha  Margareta: coitadinha!  Só  tem  quatro  anos.  (Passos,  barulhos.)  Não  que  eu seja  uma  mulher esquiva e selvagem: simplesmente me irrita uma recepção com mais de cinco ou seis convidados. No final é uma grande bagunça, discursos sem pé nem cabeça, e eu tenho a triste impressão de que ninguém percebe a minha presença, salvo quando circulo com as bandejas.
Além disso, não costumamos receber pessoas: só duas, três vezes por ano, e raramente aceitamos convites. É compreensível: ninguém pode oferecer aos próprios hóspedes  o  que  nós  oferecemos.  Há  quem  tenha  belos  quadros,  Renoir,  Picasso, Caravaggio; há quem tenha um orangotango domesticado ou um cachorro ou um gato vivos; há quem disponha de um bar com os estupefacientes mais avançados; mas nóstemos Patricia... (suspiro) Patricia!
(Campainha.) Os primeiros chegaram. (Bate  numa  porta.)  Venha,  Peter,  estou aqui.
Lotte e Peter Thörl; Maria e Robert Lutzer.
Todos se cumprimentam.
ROBERT:  Boa  noite,  Lotte;  boa  noite,  Peter.  Que  tempo  horroroso!  Há quantos meses não vemos o sol?
PETER: E há quanto tempo não vemos vocês?
LOTTE:  Oh,  Maria!  Você  está  mais  jovem  que  nunca.  E  que  casaco maravilhoso! Presente do marido?
ROBERT: Já não são uma novidade. É um marciano prateado: parece que os russos  importaram  uma  grande  quantidade  deles;  podem  ser  encontrados  no  setor oriental  a  preços  bem  razoáveis.  No  mercado  negro,  é  claro:  é  uma  mercadoria controlada.
PETER: Eu te invejo e te admiro, Robert. Conheço poucos berlinenses que não  se  queixam  da  situação,  mas  não  conheço  nenhum  que  se  safe  com  a  sua desenvoltura. Cada vez mais me convenço de que o amor verdadeiro e apaixonado pelo dinheiro é uma virtude que não se aprende, mas se herda com o sangue.
MARIA:  Quantas  flores!  Lotte,  estou  sentindo  um  maravilhoso  perfume  de aniversário. Parabéns, Lotte!
LOTTE (aos dois maridos): Maria é incorrigível. Mas se console, Robert, não foi o casamento que a deixou assim, tão deliciosamente distraída. Ela já era assim na escola:  nós  a  chamávamos  de  “a  desmiolada  de  Colônia”,  e  convidávamos  amigos  e amigas  de  outras  turmas  para  assistir  às  suas  provas  orais.  (Com  severidade  burlesca)
Sra. Lutzer, tenha mais atenção. É assim que prepara as lições de história? Hoje não é o meu aniversário: hoje é 19 de dezembro, aniversário de Patricia.
MARIA:  Oh,  me  desculpe,  querida.  Tenho  realmente  uma  memória  de galinha. Então hoje à noite haverá o descongelamento? Que beleza!
PETER: Claro, como todos os anos. Vamos apenas esperar a chegada de Ilse e Baldur. (Campainha.) Aqui estão: atrasados, como sempre.
LOTTE: Seja mais compreensivo, Peter! Você  já viu um casal de namorados chegar na hora marcada?
Ilse e Baldur entram. Cumprimentos de ambas as partes.
Lotte e Peter; Maria e Robert; Ilse e Baldur.
PETER:  Boa  noite,  Ilse;  boa  noite,  Baldur.  É  um  privilégio  vê-los  de  novo: vocês estão a tal ponto apaixonados um pelo outro que os velhos amigos não existem mais para vocês.
BALDUR:  Por  favor,  nos  perdoem.  Estamos  nadando  contra  a  burocracia:  o meu doutorado, os papéis para a prefeitura, o salvo-conduto para Ilse, o beneplácito do  partido;  o  visto  do  prefeito  já  chegou,  mas  ainda  estamos  esperando  o  de Washington e o de Moscou, principalmente o de Pequim, que é o mais difícil de ser obtido. É de deixar louco. Há séculos não vemos ninguém: ficamos pálidos e feios, temos vergonha de exibir os nossos rostos por aí.
ILSE:  Chegamos  tarde,  não  é?  Somos  mesmo  dois  cafonas.  Mas  por  que  não começaram sem a gente?
PETER: Nunca faríamos isso. O momento do despertar é o mais interessante: ela é tão graciosa quando abre os olhos!
ROBERT:  Vamos,  Peter,  é  melhor  começarmos,  senão  terminaremos  de madrugada. Vá pegar o manual: e não faça como naquela vez, a primeira, acho (quantos anos atrás?), quando você errou um procedimento e quase estragou tudo.
PETER  (incomodado):  Estou  com  o  manual  aqui  no  bolso;  mas  já  sei  as instruções de cor. Vamos para a outra sala? (Rumor de cadeiras arrastadas e de passos; comentários; murmúrios de impaciência.) ... Um: interromper o circuito de azoto e o de gás  inerte.  (Executa:  rangido,  sopro  abafado,  duas  vezes.)  Dois:  acionar  a  bomba,  o esterilizador Wroblewski e o microfiltro. (Barulho da bomba, como de uma motocicleta distante;  alguns  segundos  de  espera.)  Três:  abrir  o  circuito  de  oxigênio  (começa  um chiado cada vez mais agudo) e girar lentamente a válvula até que o indicador atinja a marca de vinte e um por cento...
ROBERT: Não, Peter, vinte e quatro por cento: no manual está escrito vinte equatro  por  cento.  Se  eu  fosse  você,  colocaria  os  óculos.  Não  leve  a  mal,  temos  a mesma idade, mas eu colocaria os óculos, pelo menos em certas ocasiões.
PETER (de  mau  humor):  Sim,  você  tem  razão,  vinte  e  quatro  por  cento.  Mas tanto  faz,  vinte  e  um  ou  vinte  e  quatro  por  cento:  já  fiz  isso  outras  vezes.  Quatro: deslocar gradualmente o termostato, elevando a temperatura à velocidade de cerca de dois graus por minuto. (Ouve-se a batida de um metrônomo.) Agora, silêncio, por favor. Ou pelo menos não falem tão alto.
ILSE (sussurrando): Ela sofre durante o descongelamento?
PETER (voz baixa): Não, em tese, não. Mas é por isso que é necessário fazer tudo  certo,  seguir  exatamente  as  prescrições.  Mesmo  durante  a  temporada  na geladeira,  é  indispensável  que  a  temperatura  seja  mantida  dentro  de  limites rigorosos.
ROBERT: Certo: basta qualquer grau a menos e adeus, li que alguma coisa se coagula nos centros nervosos, e aí eles não acordam mais, ou acordam deficientes e sem memória; já se a temperatura estiver um pouco acima do padrão, eles retomam a consciência,  mas  sofrem  terrivelmente.  Imagine  que  horror:  sentir-se  inteiramente congelado, mãos,  pés,  sangue, coração,  cérebro,  e não  poder  mover um  dedo,  nãopoder bater as pálpebras, não poder emitir um som e pedir socorro!
ILSE: Terrível! É preciso coragem e muita fé. Quero dizer, fé nos termostatos. Eu, por mim, sou louca por esportes de inverno, mas sinceramente não trocaria de lugar com Patricia nem por todo o ouro do mundo. Soube até que ela já estaria morta se, quando as experiências começaram, não lhe tivessem injetado aquele... como se diz... an-ti-con-ge-lante. Sim, aquele mesmo que no inverno colocamos nos radiadores dos carros. Mas é lógico: senão, o sangue congelaria. Não é verdade, sr. Thörl?
PETER (evasivo): Dizem tantas coisas...
ILSE (pensativa): Não me surpreende que tão poucos tenham se submetido a isso. Palavra, não me surpreende. Me disseram que ela é linda: é verdade?
ROBERT: Esplêndida. No ano passado eu a vi de perto: uma carnação como hoje não existe mais. Vê-se que, apesar de tudo, o regime alimentar do século XX, ainda  em  grande  parte  natural,  devia  conter  algum  princípio  vital  que  até  hoje desconhecemos.  Não  que  eu  desconfie  dos  químicos:  ao  contrário,  tenho  o  maior respeito  e  estima  por  eles.  Mas  acho  que  são...  como  dizer...  pretensiosos,  sim, pretensiosos. Na minha opinião, há sempre algo a descobrir, ainda que secundário.
LOTTE (de  má  vontade):  Sim,  ela  de  fato  é  graciosa.  De  resto,  é  a  beleza  da idade. Tem uma pele de recém-nascida: para mim, é o efeito do supercongelamento. Não  tem  uma  cor  natural,  é  muito  rosada  e  muito  branca,  parece...  sim,  parece  um sorvete, desculpem a comparação. Até os cabelos são demasiado louros. Para dizer a verdade,  me  dá  a  impressão  de  ser  um  pouco  passada,  faisandée...  porém  é  bela, ninguém  pode  negar.  Também  é  muito  culta,  educadíssima,  inteligentíssima, audaciosa, superlativa em todos os aspectos, e por isso me dá medo, me incomoda, me deixa complexada. (Falou mais do que devia; cala-se, embaraçada, e então continua,com  esforço)  ...  mas  mesmo  assim  eu  gosto  muito  dela.  Especialmente  quando  está congelada. Silêncio. O metrônomo continua batendo.
ILSE (sussurrando): É possível olhar pela janelinha da geladeira?
PETER (voz baixa): Claro, mas não faça barulho. Já estamos a menos dez, e uma emoção repentina poderia ser prejudicial a ela.
ILSE: Oh! É encantadora! Parece falsa... E é... quero dizer, é mesmo da época?
BALDUR (à parte): Não faça perguntas tolas!
ILSE  (à  parte):  Não  é  uma  pergunta  tola.  Queria  saber  quantos  anos  tem: parece tão jovem, e no entanto dizem que é... antiga.
PETER  (que  ouviu):  É  facilmente  explicável,  senhorita.  Patricia  tem  cento  e sessenta  e  três  anos,  dos  quais  vinte  e  três  de  vida  normal  e  cento  e  quarenta  de hibernação. Mas, me desculpem, eu pensei que vocês já soubessem dessa história. A vocês  que  já  sabem,  Maria  e  Robert,  desculpem  a  repetição:  tentarei  explicar rapidamente o caso ao nosso querido casal.
Vocês  devem  saber  que  a  técnica  de  hibernação  foi  iniciada  em  meados  do século XX, basicamente com objetivos clínicos e cirúrgicos. Mas só em 1970 chegou-se  a  congelamentos  realmente  inócuos  e  indolores,  portanto  aptos  a  conservar  por longo  tempo  organismos  complexos.  Com  isso,  um  sonho  se  tornou  realidade: parecia  possível  “enviar”  um  homem  ao  futuro.  Mas  a  que  distância  no  futuro? Existiriam limites? E a que preço? Justamente  para  instituir  um  controle  para  uso  das  gerações  vindouras,  que seríamos nós, foi aberto aqui em Berlim, em 1975, um concurso para voluntários.
BALDUR: E Patricia é um desses?
PETER: Exatamente. Pelo que sabemos de seu registro pessoal, que está na geladeira com ela, trata-se da primeira classificada. Possuía todo os requisitos, coração, pulmões, rins etc., tudo em perfeito estado; um sistema nervoso de piloto espacial; um  caráter  imperturbável  e  decidido,  uma  emotividade  ilimitada,  e  finalmente  uma boa  cultura  e  inteligência.  Não  que  inteligência  e  cultura  sejam  indispensáveis  para suportar  a  hibernação,  mas,  em  igualdade  de  condições,  deram  preferência  a indivíduos de  alto  nível intelectual,  por  evidentes razões  de  prestígio em  relação  a nós e aos nossos sucessores.
BALDUR: Então Patricia dormiu de 1975 até hoje?
PETER: Sim, com breves interrupções. O programa foi acertado entre ela e a comissão, cujo presidente era Hugo Thörl, meu célebre antepassado...
ILSE: Ele é aquele famoso, que a gente estuda na escola?
PETER:  Ele  mesmo,  senhorita,  o  descobridor  do  quarto  princípio  da termodinâmica.  O  programa  previa  um  despertar  de  algumas  horas,  a  cada  ano,sempre em 19 de dezembro, dia do seu aniversário...
ILSE: Que idéia singela!
PETER:  ...  e  também  em  circunstâncias  de  especial  interesse,  como importantes  expedições  planetárias,  crimes  e  processos  célebres,  casamentos  de soberanos ou de musas do cinema, encontros internacionais de beisebol, cataclismos da  natureza  e  fatos  semelhantes:  enfim,  tudo  o  que  mereça  ser  visto  e  preservado para  um  futuro  distante.  Além  disso,  naturalmente,  sempre  que  falta  luz...  e  duas vezes  por  ano  para  exames  médicos.  Pelo  que  consta  dos  registros,  a  soma  dos intervalos de vigília, de 1975 até hoje, é de cerca de trezentos dias.
BALDUR: ... e, me desculpe a pergunta, como Patricia se tornou hóspede de sua casa? Está aqui há muito tempo? PETER  (embaraçado):  Patricia  é...  Patricia  faz  parte,  por  assim  dizer,  da  linha
hereditária da nossa família. É uma longa história, em parte obscura. Sabe, são coisas de outros tempos, já se passou um século e meio... pode-se considerar um milagre que,  com  todas  as  insurreições,  bloqueios,  ocupações,  repressões  e  saques  que ocorreram  em  Berlim,  Patricia  tenha  sido  transmitida  de  pai  para  filho,  ilesa,  sem nunca ter deixado a nossa casa. De certo modo, representa a continuidade familiar: é... um símbolo.
BALDUR: ... mas como...
PETER:  ...  como  Patricia  passou  a  fazer  parte  da  nossa  família?  Bem,  por estranho que pareça, não se encontrou nada escrito sobre esse ponto, há apenas uma tradição oral que Patricia se recusa a confirmar ou a desmentir. Parece que, no início da experiência, Patricia foi alojada na Universidade, precisamente na câmara frigorífica do Instituto de Anatomia, e que por volta de 2000 ela teria tido uma violenta discussão com  o  corpo  acadêmico.  Diz-se  que  aquela  situação  não  lhe  agradava  porque  não preservava a sua intimidade, e também porque ela não queria estar ombro a ombro com  cadáveres  destinados  à  dissecação.  Parece  que  numa  das  vigílias  ela  teria declarado formalmente que ou a colocavam num frigorífico privado, ou recorreria à corte; e que Hugo Thörl, naquela época decano da faculdade, para resolver a questão, teria generosamente se oferecido para hospedá-la.
ILSE:  Que  mulher  estranha!  Mas,  me  desculpem,  ela  já  não  tem  o  bastante? Quem  a  obriga?  Além  disso,  não  deve  ser  muito  divertido  ficar  em  letargia  o  ano inteiro  e  acordar  apenas  por  um  ou  dois  dias,  e  não  quando  se  quer,  mas  quando algum outro decide. Para mim, seria um tédio mortal.
PETER:  Engano  seu,  Ilse.  Ao  contrário,  nunca  houve  uma  existência  mais intensa  que  a  de  Patricia.  A  vida  dela  está  concentrada:  só  contém  o  essencial,  não contém nada que não mereça ser vivido. Quanto ao tempo passado na geladeira, ele passa  para  nós,  não  para  ela.  Não  deixa  marcas  nela,  nem  na  memória  nem  nos tecidos. Ela não envelhece, exceto nas horas de vigília. Do primeiro aniversário na geladeira,  que  foi  o  vigésimo  quarto  dela,  até  hoje,  em  cento  e  quarenta  anos, envelheceu  menos  de  um  ano.  Do  ano  passado  até  agora,  para  ela  transcorreram apenas trinta horas.
BALDUR: Três ou quatro horas no aniversário, e o resto?
PETER:  Depois,  vamos  ver  (calcula  mentalmente),  outras  seis  ou  sete  para  o dentista, para experimentar uma roupa, para ir com Lotte comprar um par de sapatos...
ILSE: É justo. É preciso que ela pelo menos acompanhe a moda.
PETER: ... e já estamos em dez. Seis horas para a estréia de Tristão na Ópera, e são dezesseis. Outras seis para dois exames médicos gerais...
ILSE: Como, ela esteve doente? É  claro, essas mudanças de temperatura não fazem bem a ninguém. Dizer que nos habituamos é mentira!
PETER: Não, não, está muito bem de saúde. São os fisiologistas do Centro de Estudos: regulares como a cobrança das taxas, eles vêm aqui duas vezes por ano, com todos os seus apetrechos, a descongelam, reviram-na de todos os lados, radioscopias, testes psicológicos, eletrocardiogramas, exames de sangue... depois vão embora, sem dizer palavra. Segredo profissional: nenhum comentário.
BALDUR: Mas então não é por interesse científico que vocês a têm em casa? 
PETER (constrangido): Não... não só. Sabe, eu trabalho com outras coisas... Não fui feito para o ambiente acadêmico; o fato é que nos afeiçoamos a Patricia. E ela se afeiçoou a nós, como uma filha. Não nos deixaria por nada.
BALDUR: Mas então por que os intervalos de vigília são tão raros e breves?
PETER:  Isso  é  óbvio:  Patricia  pretende  chegar  em  plena  juventude  aos próximos  séculos,  por  isso  deve  fazer  economia.  Mas  você  terá  a  oportunidade  de ouvir dela mesma essas coisas e outras mais: pronto, chegamos a trinta e cinco graus, está abrindo os olhos. Rápido, querida, abra a porta e corte o invólucro; começou a respirar. Estalo e rangido da porta; barulho de tesouras ou de corta-papéis.
BALDUR: Que invólucro?
PETER: Um invólucro de polietileno, hermético, muito aderente. Serve para reduzir as perdas por evaporação. O metrônomo, que se ouvia ao fundo em todas as pausas, bate cada vez mais forte,  e  então  pára  de  repente.  Soa  três  vezes  uma  sirena,  nitidamente.  Silêncio completo por alguns segundos.
MARGARETA (do outro cômodo): Mamãe! Tia Patricia já acordou? O que ela me trouxe neste ano?
LOTTE: O que você queria que ela te trouxesse? O mesmo cubinho de gelo!
Além disso, é o aniversário dela, não o seu. Agora fique quieta. Durma que já é tarde.Novo  silêncio.  Ouve-se  um  suspiro,  um  bocejo,  um  espirro  escandaloso. Depois, sem transição, Patricia começa a falar.
PATRICIA (voz amaneirada, arrastada, nasal): Boa noite, bom dia. Que horas são? Quanta gente! Que dia é hoje? Que ano?
PETER: 19 de dezembro de 2115. Não lembra? É o seu aniversário. Parabéns, Patricia!
TODOS: Parabéns, Patricia! Vozes de todos, misturadas. Ouvem-se pedaços de frases: “Como é bonita!”
“Senhorita, me perdoe, gostaria de fazer algumas perguntas...”
“Depois, depois! Imaginem como está cansada!”
“Sonha quando está na geladeira? Que tipo de sonho?”
“Queria sua opinião sobre a...”

ILSE: Será que conheceu Napoleão e Hitler?
BALDUR: Claro que não! O que você está dizendo? Foram dois séculos antes!
LOTTE (interrompe com decisão): Com licença, por favor. Deixem-me passar, é preciso que alguém pense nas coisas práticas. Patricia talvez necessite de algo... (para Patricia)  uma  xícara  de  chá  quente?  Ou  talvez  algo  mais  nutritivo?  Uma  pequena bisteca? Precisa trocar de roupa, tomar um ar?
PATRICIA: Chá, obrigada. Como você é amável, Lotte! Não, por enquanto não preciso de mais nada; você sabe, o descongelamento me deixa o estômago sempre embrulhado; quanto à bisteca, talvez mais tarde. Mas pequena, certo? Oh, Peter, como vai? Como vai sua ciática? Quais as novidades? Terminou a conferência de cúpula? Já começou a fazer frio? Ah, detesto o inverno, sou muito sujeita a resfriados... E você, Lotte? Parece ótima, até mais gordinha, talvez...
MARIA: ... É verdade, os anos passam para todos...
BALDUR:  Passam  para  quase  todos.  Peter,  me  permita,  ouvi  tanto  falar  de Patricia, esperei tanto esse encontro, que agora gostaria... (Para  Patricia)  Senhorita, perdoe  o  meu  entusiasmo,  sei  que  o  seu  tempo  é  curto,  mas  gostaria  que  me descrevesse o nosso mundo visto com os seus olhos, que me falasse do seu passado, do seu século que nos deu tanto, de suas intenções para o futuro, que...
PATRICIA (com segurança): Não há nada de extraordinário, a gente se acostuma logo. Veja aqui o sr. Thörl, por exemplo, cinqüentão (maldosamente),  cabelos  ralos, barriguinha,  pequenas  dores  de  vez  em  quando.  Pois  bem,  para  mim,  dois  meses atrás, ele tinha vinte anos, escrevia poesias, estava para partir como voluntário com os Ulanos.  Há  três  meses,  tinha  dez  e  me  chamava  de  tia  Patricia,  chorava  quando  me congelavam  e  queria  vir  comigo  para  a  geladeira.  Não  é  verdade,  Peter?  Oh,  me desculpe.
Cinco  meses  atrás,  ele  não  só  não  havia  nascido,  mas  não  estava  nem remotamente nos planos; havia o pai, o coronel, mas eu falo de quando ele era apenas tenente,  estava  na  Quarta  Legião  de  Mercenários,  e  a  cada  despertar  ele  tinha  uma condecoração  a  mais  e  uns  cabelos  a  menos.  Ele  me  cortejava,  daquele  jeito engraçado que se usava na época: cortejou-me durante oito degelos... pode-se dizer que os Thörl têm isso no sangue, e nesse aspecto garanto que todos se assemelham.
Não têm... como dizer?... não têm uma idéia muito séria da relação de tutela... (a voz de Patricia prossegue em diminuendo) imagine que até o Ancestral, o Patriarca... Sobrepõe-se nítida e próxima a voz de Lotte, dirigida ao público.
LOTTE:  Vocês  ouviram?  Essa  moça  é  assim.  Não  tem...  não  tem  papas  na língua.  É  verdade  que  engordei,  mas  não  estou  numa  geladeira.  Ela  não,  ela  não engorda, é eterna, incorruptível como o amianto, o diamante, o ouro. Mas gosta dos homens, especialmente dos maridos alheios. É uma arrogante eterna, uma sedutora incorruptível. Então apelo aos senhores: não tenho razões para detestá-la? (Suspiro)  ... e ela agrada aos homens, mesmo com a venerável idade: isso é o pior. Vocês sabem como são os homens, Thörl ou não Thörl, e os intelectuais mais que os outros: dois suspiros, duas olhadas de um certo modo, duas lembranças de infância, e a armadilha dispara. Mais tarde, quem tem problemas é ela, claro — depois de um mês ou dois, acorda em meio a corações moles e meio passados... Não, não pensem que eu seja tão cega ou tão tola: também me dei conta de que, desta vez, ela mudou de tom com o meu  marido,  se  tornou  mordaz,  cortante.  Compreensível:  há  outro  homem  no horizonte.  Mas  vocês  não  assistiram  às  outras  vezes  em  que  despertou.  Eu  devia arrancar-lhe  o  couro!  De  resto...  nunca  consegui  ter  provas,  dar  um  flagrante,  mas vocês acham que tudo era feito às claras entre a jovem e o “tutor”? Em outras palavras (com força), acham que todos os descongelamentos foram regularmente registrados no livro pessoal? Eu não acho. Não tenho muita certeza disso. (Pausa.  Conversa  confusa, com barulho ao fundo.) Mas desta vez há novidades, como vocês mesmos notaram. É simples: há outro homem em vista, um homem mais jovem. Essa garotinha gosta de carne fresca! Basta ouvi-la: ela não demonstra saber o que quer? (Vozes.) Oh, não achei que já estivéssemos nesse ponto.
Das vozes do fundo emergem as falas de Baldur e de Patricia.
BALDUR:  ...  uma  impressão  que  nunca  experimentei.  Nunca  imaginei  que fosse  possível  encontrar  numa  mesma  pessoa  o  fascínio  da  eternidade  e  o  da juventude. Sinto-me como se estivesse diante das pirâmides, e no entanto a senhora étão jovem e tão bela!
PATRICIA: Sim, senhor... Baldur, é assim que se chama, não é? Sim, Baldur. Mas os meus dons são três, e não dois. A eternidade, a juventude e a solidão. E este último é o preço a pagar pela audácia que tive.
BALDUR: Mas que experiência admirável! Passar voando quando os outros se arrastam pela vida, poder comparar p
essoalmente costumes, acontecimentos e heróis à  distância  de  décadas  e  séculos!  Qual historiador não  a  invejaria?  E  eu,  que  me proclamava cultor da história! (Com ímpeto repentino) Deixe-me ler o seu diário. PATRICIA:  Como  sabe...  Quero  dizer,  o  que  o  faz  pensar  que  eu  tenha  um diário?
BALDUR: Então ele existe! Adivinhei!
PATRICIA:  Sim,  tenho.  Faz  parte  do  programa,  mas  ninguém  sabe,  nem mesmo  Thörl.  E  ninguém  pode  lê-lo:  está  cifrado,  e  isso  também  faz  parte  do programa.
BALDUR: Se ninguém pode ler, serve pra quê?
PATRICIA: Para mim. Servirá mais tarde.
BALDUR: Mais tarde quando?
PATRICIA:  Depois.  Quando  eu  tiver  chegado.  Então  espero  publicá-lo:  acho que  não  terei  dificuldade  em  encontrar  um  editor,  porque  é  um  diário  íntimo,  um gênero que sempre vende. (Com voz sonhadora.) Penso em dedicar-me ao jornalismo,
sabe? E publicar os diários íntimos de todos os poderosos da Terra de minha época, Churchill, Stálin etc. Dá para ganhar um monte de dinheiro.
BALDUR: Mas como a senhora tem esses diários?
PATRICIA:  Eu  não  os  tenho.  Escreverei  eu  mesma.  Baseada  em  episódios autênticos, claro.
Pausa.
BALDUR: Patricia! (Outra pausa). Vamos ficar juntos!
PATRICIA (pensa um pouco; depois, muito friamente): Em termos abstratos, não seria  uma  má  idéia.  Mas  não  pense  que  basta  entrar  na  geladeira:  é  preciso  tomar injeções, seguir o curso preparatório... Não é tão simples. Além disso, nem todos têm um  organismo  apto...  Sim,  seria  simpático  ter  um  companheiro  de  viagem  como  o senhor, tão vivo, tão apaixonado, com um temperamento tão rico... Mas o senhor não está noivo?
BALDUR: Noivo? Estava.
PATRICIA: Até quando?
BALDUR: Até meia hora atrás: mas agora eu a encontrei, e tudo mudou.
PATRICIA:  O  senhor  é  um  conquistador,  um  homem  perigoso.  (A  voz  de Patricia  muda  bruscamente,  não  é  mais  lamentosa  e  lânguida,  mas  nítida,  enérgica,cortante.) De qualquer modo, se as coisas estão como o senhor diz, poderia nascer um acordo interessante.
BALDUR: Patricia! Por que adiar? Vamos partir: fuja comigo. Não no futuro: no presente.
PATRICIA (friamente): Estava pensando justamente nisso. Mas quando?
BALDUR: Agora, imediatamente. Atravessamos a sala e vamos.
PATRICIA: Nonsense. Logo todos estariam atrás de nós, e ele à frente. Veja: já está com suspeitas.
BALDUR: Então quando?
PATRICIA: Esta noite. Ouça bem. À meia-noite todos vão embora, e eles me recongelam e me recolocam na naftalina. É um processo mais rápido que o despertar, parecido  com  o  dos  anfíbios,  o  senhor  sabe,  é  preciso  sair  da  água  devagar,  mas  a imersão  pode  ser  rápida.  Eles  me  metem  na  geladeira  e  ligam  o  compressor  sem muita  cerimônia:  mas  nas  primeiras  horas  eu  me  mantenho  bem  macia,  posso facilmente retornar à vida ativa.
BALDUR: E então?
PATRICIA: Então é simples. O senhor vai com os outros, acompanha a sua... aquela  garota  até  a  casa;  depois  volta  aqui,  entra  no  jardim,  passa  pela  janela  da cozinha...
BALDUR:  ...  e  pronto!  Mais  duas  horas,  duas  horas  e  o  mundo  será  nosso! Mas,  me  diga,  Patricia,  não  haverá  arrependimentos?  Não  vai  lamentar  ter interrompido a sua corrida para os séculos futuros por minha causa?
PATRICIA:  Veja,  meu  jovem,  nós  teremos  tempo  bastante  para  falar  dessas belas  coisas  se  o  plano  der  certo.  Mas  antes  é  preciso  que  aconteça.  Olhe,  já  estão indo; volte ao seu lugar, despeça-se civilizadamente e tente não fazer bobagens. Sabe, não é por nada, mas eu detestaria perder a ocasião.

Vozes  dos  convidados  se  despedindo,  barulho  de  cadeiras  sendo  arrastadas.
Pedaços de frases:
“Até o próximo ano!”
“Boa noite, se posso dizer assim...”
“Vamos, Robert, não achei que fosse tão tarde.”
“Baldur, vamos, você terá a honra de me acompanhar.”
Silêncio. Depois a voz de Lotte, dirigida ao público.

LOTTE: ... e assim foram todos embora. Peter e eu ficamos sós, com Patricia, o que nunca é agradável para nenhum de nós três. Não digo por causa da antipatia que descrevi antes, de modo talvez um tanto impulsivo; não: é uma situação objetivamente desagradável, fria, falsa, cheia de constrangimento para todos. Falamos um pouco de uma coisa ou outra, depois nos despedimos, e Peter recolocou Patricia na geladeira.  Os mesmos ruídos do descongelamento, mas invertidos e acelerados. Suspiro, bocejo. Rápido fechamento do invólucro. Metrônomo acionado, depois a bomba, os chiados  etc.  O  metrônomo  continua  em  movimento,  cujo  ritmo  gradualmente  se confunde  com  o  som  mais  lento  de  um  relógio  de  pêndulo.  Soa  uma  hora,  uma  e meia, duas. Ouve-se o rumor de um carro que se aproxima, pára, a porta bate. Um cachorro  late  ao  longe.  Passos  no  jardim.  Uma  janela  se  abre.  Passos  no  piso  de madeira, que range cada vez mais próximo. Abre-se a porta da geladeira. 
BALDUR (sussurrando): Patricia, sou eu!
PATRICIA (voz confusa e abafada): Crmdtimrs lm mvolmcrm!
BALDUR: Coooooomo?
PATRICIA (mais nitidamente): Corte o invólucro!

Ruído do corte.

BALDUR: Pronto. E agora? O que devo fazer? Por favor, me perdoe, mas não tenho prática, sabe, é a primeira vez que me acontece...
PATRICIA: Oh, o principal já foi feito, agora eu me viro sozinha. Só me ajude a sair daqui.

Passos. “Devagar”, “Psss”, “Por este lado”. Janela. Passos no jardim. A porta do carro. Baldur liga o motor.

BALDUR:  Saímos,  Patricia.  Saímos  do  gelo,  saímos  do  pesadelo.  Parece  que estou sonhando: há duas horas estou vivendo num sonho. Tenho medo de acordar.
PATRICIA (friamente): Levou sua noiva para casa?
BALDUR: Quem, Ilse? Acompanhei-a, sim. Inclusive me despedi dela.
PATRICIA: Como assim, se despediu? Definitivamente?
BALDUR: Sim, nem foi tão difícil quanto eu pensava, só uma rápida cena. Ela nem chorou.

Pausa, o carro está em movimento.
PATRICIA: Meu jovem, não me leve a mal. Acho que chegou o momento de uma explicação. Por favor, me entenda: eu precisava sair de lá de qualquer jeito.
BALDUR: ... e se tratava apenas disso? Sair?

PATRICIA: Só isso. Sair do frigorífico e sair da casa Thörl. Baldur, sinto que lhe devo uma confissão.
BALDUR: Uma confissão é pouco.
PATRICIA: É tudo o que eu posso lhe dar; e não é uma bela confissão. Estou realmente cansada: gelo e degelo, gelo e degelo, depois de muito tempo isso cansa.Além disso, há outra coisa.
BALDUR: Mais outra?
PATRICIA:  Sim,  mais  outra.  As  visitas  dele,  de  noite.  A  trinta  e  três  graus, ainda morna, quando estava totalmente indefesa. E, como eu ficava calada — claro! —, ele talvez imaginasse...
BALDUR: Minha querida, como deve ter sido sofrido!
PATRICIA: Uma verdadeira tortura, não pode imaginar. Um tédio indizível.

Barulho do carro, que se afasta.

LOTTE: ... E assim termina esta história. Eu tinha percebido algo, e naquela noite ouvi barulhos estranhos. Mas fiquei calada: por que deveria dar o alarme?
Acho que assim será melhor para  todos. Baldur, coitadinho, me contou tudo: parece que Patricia, além de tudo, ainda lhe pediu dinheiro; queria ir não sei aonde, reencontrar  um  colega  que  está  nos  Estados  Unidos,  também  na  geladeira, obviamente.  Quanto  a  ele,  Baldur,  se  reatará  o  noivado  com  Ilse  ou  não,  isso  não importa  a  ninguém,  nem  mesmo  a  Ilse.  A  geladeira  foi  vendida.  Sobre  Peter, veremos.

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