quarta-feira, 27 de julho de 2016

A causa secreta - Machado de Assis


Garcia, em pé, mirava e estalava as unhas; Fortunato, na cadeira de balanço, olhava para o teto; Maria Luísa, perto da janela, concluía um trabalho de agulha. Havia já cinco minutos que nenhum deles dizia nada. Tinham falado do dia, que estivera excelente, — de Catumbi, onde morava o casal Fortunato, e de uma casa de saúde, que adiante se explicará. Como os três  personagens  aqui presentes  estão  agora  mortos  e  enterrados,  tempo  é  de  contar  a história sem rebuço. Tinham falado também de outra coisa, além daquelas três, coisa tão feia e grave, que não lhes deixou muito gosto para tratar do dia, do bairro e da casa de saúde. Toda a conversação a  este  respeito  foi constrangida.  Agora  mesmo,  os  dedos  de  Maria  Luísa  parecem  ainda trêmulos, ao passo que há no rosto de Garcia uma expressão de severidade, que lhe não é habitual.  Em  verdade,  o  que  se passou  foi  de  tal  natureza,  que  para  fazê-lo  entender,  é preciso remontar à origem da situação.
Garcia tinha-se formado em medicina, no ano anterior, 1861. No de 1860, estando ainda na Escola, encontrou-se com Fortunato, pela primeira vez, à porta da Santa Casa; entrava, quando o outro saía. Fez-lhe impressão a figura; mas, ainda assim, tê-la-ia esquecido, se não fosse o segundo encontro, poucos dias depois. Morava na rua de D. Manuel. Uma de suasraras distrações era ir ao teatro de S. Januário, que ficava perto, entre essa rua e a praia; iauma  ou  duas  vezes  por  mês,  e  nunca  achava acima  de  quarenta  pessoas.  Só  os  mais intrépidos ousavam estender os passos até aquele recanto da cidade. Uma noite, estando nas cadeiras, apareceu ali Fortunato, e sentou-se ao pé dele.
A  peça  era  um  dramalhão,  cosido  a  facadas,  ouriçado  de  imprecações  e  remorsos;  mas Fortunato ouviu-a com singular interesse. Nos lances dolorosos, a atenção dele redobrava, os olhos iam avidamente de um personagem a outro, a tal ponto que o estudante suspeitou haver na peça reminiscências pessoais do vizinho. No fim do drama, veio uma farsa; mas Fortunato  não  esperou por  ela  e  saiu;  Garcia  saiu  atrás  dele.  Fortunato  foi  pelo  beco  do Cotovelo, rua de S. José, até o largo da Carioca. Ia devagar, cabisbaixo, parando às vezes, para dar uma bengalada em algum cão que dormia; o cão ficava ganindo e ele ia andando. No largo da Carioca entrou num tílburi, e seguiu para os lados da praça da Constituição. Garcia voltou para casa sem saber mais nada. Decorreram algumas semanas. Uma noite, eram nove horas, estava em casa, quando ouviu rumor de vozes na escada; desceu logo do sótão, onde morava, ao primeiro andar, onde vivia um empregado do arsenal de guerra. Era este, que alguns homens conduziam, escada acima,ensanguentado. O preto que o servia, acudiu a abrir a porta; o homem gemia, as vozes eram confusas, a luz pouca. Deposto o ferido na cama, Garcia disse que era preciso chamar um médico.
— Já aí vem um, acudiu alguém.
Garcia olhou: era o próprio homem da Santa Casa e do teatro. Imaginou que seria parente ou amigo do ferido; mas, rejeitou a suposição, desde que lhe ouvira perguntar se este tinha família ou pessoa próxima. Disse-lhe o preto que não, e ele assumiu a direção do serviço, pediu  às  pessoas  estranhas que  se  retirassem,  pagou  aos  carregadores,  e  deu  as  primeiras ordens. Sabendo que o Garcia era vizinho e estudante de medicina, pediu-lhe que ficasse para ajudar o médico. Em seguida contou o que se passara.
— Foi uma malta de capoeiras. Eu vinha do quartel de Moura, onde fui visitar um primo, quando ouvi  um  barulho  muito  grande,  e  logo  depois  um  ajuntamento.  Parece  que  eles feriram também a um sujeito que passava, e que entrou por um daqueles becos; mas eu só vi a este senhor, que atravessava a rua no momento em que um dos capoeiras, roçando por ele, meteu-lhe o punhal. Não caiu logo; disse onde morava, e, como era a dois passos, achei melhor trazê-lo.
— Conhecia-o antes? perguntou Garcia.
— Não, nunca o vi. Quem é?
— É um bom homem, empregado no arsenal de guerra. Chama-se Gouveia.
— Não sei quem é.
Médico e subdelegado vieram daí a pouco; fez-se o curativo, e tomaram-se as informações. O desconhecido declarou chamar-se Fortunato Gomes da Silveira, ser capitalista, solteiro, morador  em Catumbi.  A  ferida  foi  reconhecida  grave.  Durante  o  curativo,  ajudado  pelo estudante, Fortunato serviu  de  criado,  segurando  a  bacia,  a  vela,  os  panos,  sem  perturbar nada,  olhando friamente para  o  ferido,  que  gemia  muito.  No  fim,  entendeu-se particularmente  com  o médico, acompanhou-o  até  o  patamar  da  escada,  e  reiterou  ao subdelegado a declaração de estar pronto a auxiliar as pesquisas da polícia. Os dois saíram, ele e o estudante ficaram no quarto. Garcia  estava atônito.  Olhou  para  ele,  viu-o  sentar-se  tranquilamente,  estirar  as  pernas, meter as mãos nas algibeiras das calças, e fitar os olhos no ferido. Os olhos eram claros, cor de chumbo, moviam-se devagar, e tinham a expressão dura, seca e fria. Cara magra e pálida; uma tira estreita de barba, por baixo do queixo, e de uma têmpora a outra, curta, ruiva e rara. Teria  quarenta  anos.  De quando  em quando,  voltava-se  para  o  estudante,  e  perguntava alguma coisa acerca do ferido; mas tornava logo a olhar para ele, enquanto o rapaz lhe dava a resposta.  A  sensação  que  o estudante  recebia era de  repulsa  ao  mesmo  tempo  que  de curiosidade;  não  podia  negar  que estava  assistindo  a  um ato  de  rara  dedicação,  e  se  era desinteressado como parecia, não havia mais que aceitar o coração humano como um poço de mistérios.
Fortunato  saiu  pouco  antes  de  uma  hora;  voltou  nos  dias  seguintes,  mas  a  cura  fez-se depressa, e, antes de concluída, desapareceu sem dizer ao obsequiado onde morava. Foi o estudante que lhe deu as indicações do nome, rua e número.
— Vou agradecer-lhe a esmola que me fez, logo que possa sair, disse o convalescente. Correu a Catumbi daí a seis dias. Fortunato recebeu-o constrangido, ouviu impaciente as palavras de agradecimento, deu-lhe uma resposta enfastiada e acabou batendo com as borlas do chambre no joelho. Gouveia, defronte dele, sentado e calado, alisava o chapéu com os dedos, levantando os olhos de quando em quando, sem achar mais nada que dizer. No fim de dez minutos, pediu licença para sair, e saiu.
— Cuidado com os capoeiras! disse-lhe o dono da casa, rindo-se.
O  pobre-diabo  saiu  de  lá  mortificado,  humilhado,  mastigando  a  custo  o  desdém, forcejando por esquecê-lo, explicá-lo ou perdoá-lo, para que no coração só ficasse a memória do benefício; mas o esforço era vão. O ressentimento, hóspede novo e exclusivo, entrou e pôs  fora  o  benefício,  de  tal modo  que  o  desgraçado  não  teve  mais  que  trepar  à  cabeça  e refugiar-se ali como uma simples ideia. Foi assim que o próprio benfeitor insinuou a este homem o sentimento da ingratidão.
Tudo isso assombrou o Garcia. Este moço possuía, em gérmen, a faculdade de decifrar os homens, de decompor os caracteres, tinha o amor da análise, e sentia o regalo, que dizia ser supremo,  de penetrar muitas  camadas  morais,  até  apalpar  o  segredo  de  um  organismo.
Picado de curiosidade, lembrou-se de ir ter com o homem de Catumbi, mas advertiu que nem recebera  dele  o  oferecimento  formal  da  casa.  Quando  menos,  era-lhe  preciso  um pretexto, e não achou nenhum.
Tempos  depois,  estando  já  formado,  e  morando  na  rua  de  Matacavalos,  perto  da  do Conde, encontrou  Fortunato  em  uma  gôndola,  encontrou-o  ainda  outras  vezes,  e  a frequência trouxe a familiaridade. Um dia Fortunato convidou-o a ir visitá-lo ali perto, em Catumbi.
— Sabe que estou casado?
— Não sabia.
— Casei-me há quatro meses, podia dizer quatro dias. Vá jantar conosco domingo.
— Domingo?
— Não esteja forjando desculpas; não admito desculpas. Vá domingo.
Garcia foi lá domingo. Fortunato deu-lhe um bom jantar, bons charutos e boa palestra, em companhia da  senhora,  que  era  interessante.  A  figura  dele  não  mudara;  os  olhos  eram  as mesmas  chapas de  estanho,  duras  e  frias;  as  outras  feições  não  eram  mais  atraentes  quedantes. Os obséquios, porém, se não resgatavam a natureza, davam alguma compensação, e não  era  pouco.  Maria  Luísa é que  possuía  ambos  os  feitiços,  pessoa  e  modos.  Era  esbelta, airosa, olhos meigos e submissos; tinha vinte e cinco anos e parecia não passar de dezenove.
Garcia,  à  segunda  vez  que  lá  foi,  percebeu  que  entre  eles  havia  alguma  dissonância  de caracteres, pouca ou nenhuma afinidade moral, e da parte da mulher para com o marido uns modos que  transcendiam  o  respeito  e  confinavam  na  resignação  e  no  temor.  Um  dia, estando os três juntos, perguntou Garcia a Maria Luísa se tivera notícia das circunstâncias em que ele conhecera o marido.
— Não, respondeu a moça.
— Vai ouvir uma ação bonita.
— Não vale a pena, interrompeu Fortunato.
— A senhora vai ver se vale a pena, insistiu o médico.
Contou o caso da rua de D. Manuel. A moça ouviu-o espantada. Insensivelmente estendeu a mão e apertou o pulso ao marido, risonha e agradecida, como se acabasse de descobrir-lhe o coração. Fortunato sacudia os ombros, mas não ouvia com indiferença. No fim contou ele próprio a visita que o ferido lhe fez, com todos os pormenores da figura, dos gestos, das palavras atadas, dos silêncios, em suma, um estúrdio. E ria muito ao contá-la. Não era o riso da dobrez. A dobrez é evasiva e oblíqua; o riso dele era jovial e franco.
— Singular homem! pensou Garcia.
Maria Luísa ficou desconsolada com a zombaria do marido; mas o médico restituiu-lhe a satisfação anterior,  voltando  a  referir  a  dedicação  deste  e  as  suas  raras  qualidades  de enfermeiro; tão bom enfermeiro, concluiu ele, que, se algum dia fundar uma casa de saúde, irei convidá-lo.
— Valeu? perguntou Fortunato.
— Valeu o quê?
— Vamos fundar uma casa de saúde?
— Não valeu nada; estou brincando.
— Podia-se fazer alguma coisa; e para o senhor, que começa a clínica, acho que seria bem bom. Tenho justamente uma casa que vai vagar, e serve.
Garcia recusou nesse e no dia seguinte; mas a ideia tinha-se metido na cabeça ao outro, e não foi possível recuar mais. Na verdade, era uma boa estreia para ele, e podia vir a ser um bom  negócio para  ambos.  Aceitou  finalmente,  daí  a  dias,  e  foi  uma  desilusão  para  Maria Luísa. Criatura nervosa e frágil, padecia só com a ideia de que o marido tivesse de viver em contato com enfermidades humanas, mas não ousou opor-se-lhe, e curvou a cabeça. O plano fez-se e cumpriu-se depressa. Verdade é que Fortunato não curou de mais nada, nem então, nem  depois.  Aberta  a  casa, foi  ele  o  próprio  administrador  e  chefe  de  enfermeiros,examinava tudo, ordenava tudo, compras e caldos, drogas e contas.
Garcia pôde então observar que a dedicação ao ferido da rua de D. Manuel não era um caso fortuito, mas assentava na própria natureza deste homem. Via-o servir como nenhum dos  fâmulos.  Não recuava  diante  de  nada,  não  conhecia  moléstia  aflitiva  ou  repelente,  e estava sempre pronto para tudo, a qualquer hora do dia ou da noite. Toda a gente pasmava e aplaudia.  Fortunato  estudava, acompanhava  as  operações,  e  nenhum  outro  curava  os cáusticos. — Tenho muita fé nos cáusticos, dizia ele.
A comunhão dos interesses apertou os laços da intimidade. Garcia tornou-se familiar na casa;  ali jantava  quase  todos  os  dias,  ali  observava  a  pessoa  e  a  vida  de  Maria  Luísa,  cuja solidão moral era evidente. E a solidão como que lhe duplicava o encanto. Garcia começou a sentir  que alguma  coisa  o  agitava,  quando  ela  aparecia,  quando  falava,  quando  trabalhava, calada, ao canto da janela, ou tocava ao piano umas músicas tristes. Manso e manso, entrou- lhe o amor no coração. Quando deu por ele, quis expeli-lo, para que entre ele e Fortunato não houvesse outro laço que o da amizade; mas não pôde. Pôde apenas trancá-lo; Maria Luísa compreendeu ambas as coisas, a afeição e o silêncio, mas não se deu por achada.
No  começo  de  outubro  deu-se  um  incidente  que  desvendou  ainda  mais  aos  olhos  do médico a situação da moça. Fortunato metera-se a estudar anatomia e fisiologia, e ocupava-se nas  horas  vagas em  rasgar  e  envenenar  gatos  e  cães.  Como  os  guinchos  dos  animais atordoavam os doentes, mudou o laboratório para casa, e a mulher, compleição nervosa, teve de  os  sofrer.  Um  dia,  porém, não  podendo  mais,  foi  ter  com  o  médico  e  pediu-lhe  que, como coisa sua, alcançasse do marido a cessação de tais experiências.
— Mas a senhora mesma...
Maria Luísa acudiu, sorrindo:
— Ele naturalmente achará que sou criança. O que eu queria é que o senhor, como médico, lhe dissesse que isso me faz mal; e creia que faz...
Garcia alcançou prontamente que o outro acabasse com tais estudos. Se os foi fazer em outra  parte, ninguém  o  soube,  mas  pode  ser  que  sim.  Maria  Luísa  agradeceu  ao  médico, tanto por ela como pelos animais, que não podia ver padecer. Tossia de quando em quando; Garcia perguntou-lhe se tinha alguma coisa, ela respondeu que nada.
— Deixe ver o pulso.
— Não tenho nada.
Não deu o pulso, e retirou-se. Garcia ficou apreensivo. Cuidava, ao contrário, que ela podia ter alguma coisa, que era preciso observá-la e avisar o marido em tempo.
Dois dias depois, — exatamente o dia em que os vemos agora, — Garcia foi lá jantar. Na sala disseram-lhe que Fortunato estava no gabinete, e ele caminhou para ali; ia chegando à porta, no momento em que Maria Luísa saía aflita.— Que é? perguntou-lhe.
— O rato! o rato! exclamou a moça sufocada e afastando-se.
Garcia lembrou-se que, na véspera, ouvira ao Fortunato queixar-se de um rato, que lhe levara um apel importante; mas estava longe de esperar o que viu. Viu Fortunato sentado à mesa,  que  havia no centro  do  gabinete,  e  sobre  a  qual  pusera  um  prato  com  espírito  de vinho.  O  líquido flamejava.  Entre  o  polegar  e  o  índice  da  mão  esquerda  segurava  um barbante, de cuja ponta pendia o rato atado pela cauda. Na direita tinha uma tesoura. No momento em que o Garcia entrou, Fortunato cortava ao rato uma das patas; em seguida desceu o infeliz até à chama, rápido, para não matá-lo, e dispôs-se a fazer o mesmo à terceira, pois já lhe havia cortado a primeira. Garcia estacou horrorizado.
— Mate-o logo! disse-lhe.
— Já vai.
E  com  um  sorriso  único,  reflexo  de  alma  satisfeita,  alguma  coisa  que  traduzia  a  delícia íntima das sensações supremas, Fortunato cortou a terceira pata ao rato, e fez pela terceira vez o mesmo movimento até a chama. O miserável estorcia-se, guinchando, ensanguentado, chamuscado, e não acabava de morrer. Garcia desviou os olhos, depois voltou-os novamente, e estendeu a mão para impedir que o suplício continuasse, mas não chegou a fazê-lo, porque o  diabo  do  homem  impunha medo,  com  toda  aquela  serenidade  radiosa  da  fisionomia. Faltava  cortar  a  última  pata; Fortunato  cortou-a  muito  devagar,  acompanhando  a  tesoura com os olhos; a pata caiu, e ele ficou olhando para o rato meio cadáver. Ao descê-lo pela quarta  vez,  até  a  chama,  deu  ainda  mais rapidez  ao  gesto,  para  salvar,  se  pudesse,  alguns farrapos de vida.
Garcia,  defronte,  conseguia  dominar  a  repugnância  do  espetáculo  para  fixar  a  cara  do homem. Nem raiva, nem ódio; tão somente um vasto prazer, quieto e profundo, como daria a outro a audição e uma bela sonata ou a vista de uma estátua divina, alguma coisa parecida com  a  pura  sensação estética.  Pareceu-lhe,  e  era  verdade,  que  Fortunato  havia-o inteiramente esquecido. Isto posto, não estaria fingindo, e devia ser aquilo mesmo. A chama ia  morrendo,  o  rato  podia  ser  que tivesse ainda  um  resíduo  de  vida,  sombra  de  sombra; Fortunato aproveitou-o para cortar-lhe o focinho e pela última vez chegar a carne ao fogo.
Afinal  deixou  cair  o  cadáver  no  prato,  e  arredou  de  si  toda  essa  mistura  de  chamusco  e sangue.
Ao levantar-se deu com o médico e teve um sobressalto. Então, mostrou-se enraivecido contra o animal, que lhe comera o papel; mas a cólera evidentemente era fingida.
— Castiga sem raiva, pensou o médico, pela necessidade de achar uma sensação de prazer, que só a dor alheia lhe pode dar: é o segredo deste homem.
Fortunato encareceu a importância do papel, a perda que lhe trazia, perda de tempo, é certo, mas o tempo agora era-lhe preciosíssimo. Garcia ouvia só, sem dizer nada, nem lhe dar crédito. Relembrava os atos dele, graves e leves, achava a mesma explicação para todos. Era a mesma  troca  das  teclas da sensibilidade,  um  diletantismo  sui  generis,  uma  redução  de Calígula.
Quando  Maria  Luísa  voltou  ao  gabinete,  daí  a  pouco,  o  marido  foi  ter  com  ela,  rindo, pegou-lhe nas mãos e falou-lhe mansamente:
— Fracalhona!
E voltando-se para o médico:
— Há de crer que quase desmaiou?
Maria Luísa defendeu-se a medo, disse que era nervosa e mulher; depois foi sentar-se à janela com as suas lãs e agulhas, e os dedos ainda trêmulos, tal qual a vimos no começo desta história. Hão de lembrar-se que, depois de terem falado de outras coisas, ficaram calados os três, o marido sentado e olhando para o teto, o médico estalando as unhas. Pouco depois foram jantar; mas o jantar não foi alegre. Maria Luísa cismava e tossia; o médico indagava de si mesmo se ela não estaria exposta a algum excesso na companhia de tal homem. Era apenas possível; mas o amor trocou-lhe a possibilidade em certeza; tremeu por ela e cuidou de os vigiar.
Ela tossia, tossia, e não se passou muito tempo que a moléstia não tirasse a máscara. Era a tísica, velha  dama  insaciável,  que  chupa  a  vida  toda,  até  deixar  um  bagaço  de  ossos.
Fortunato recebeu a notícia como um golpe; amava deveras a mulher, a seu modo, estava acostumado com ela, custava-lhe perdê-la. Não poupou esforços, médicos, remédios, ares, todos os recursos e todos os paliativos. Mas foi tudo vão. A doença era mortal. Nos  últimos  dias,  em  presença  dos tormentos  supremos  da  moça,  a  índole  do  marido subjugou  qualquer  outra  afeição.  Não  a deixou  mais;  fitou  o  olho  baço  e  frio  naquela decomposição lenta e dolorosa da vida, bebeu uma a uma as aflições da bela criatura, agora magra e transparente, devorada de febre e minada de morte. Egoísmo aspérrimo, faminto de sensações, não lhe perdoou um só minuto de agonia, nem lhos pagou com uma só lágrima, pública ou íntima. Só quando ela expirou, é que ele ficou aturdido. Voltando a si, viu que estava outra vez só.
De noite, indo repousar uma parenta de Maria Luísa, que a ajudara a morrer, ficaram na sala Fortunato e Garcia, velando o cadáver, ambos pensativos; mas o próprio marido estava fatigado, o médico disse-lhe que repousasse um pouco. 
— Vá descansar, passe pelo sono uma hora ou duas: eu irei depois.
Fortunato saiu, foi deitar-se no sofá da saleta contígua, e adormeceu logo. Vinte minutos depois acordou,  quis  dormir  outra  vez,  cochilou  alguns  minutos,  até  que  se  levantou  e voltou à sala. Caminhava nas pontas dos pés para não acordar a parenta, que dormia perto. Chegando à porta, estacou assombrado.
Garcia tinha-se chegado ao cadáver, levantara o lenço e contemplara por alguns instantes as feições defuntas. Depois, como se a morte espiritualizasse tudo, inclinou-se e beijou-o na testa. Foi nesse momento que Fortunato chegou à porta. Estacou assombrado; não podia ser o beijo da amizade, podia ser o epílogo de um livro adúltero. Não tinha ciúmes, note-se; a natureza compô-lo de maneira que lhe não deu ciúmes nem inveja, mas dera-lhe vaidade, que não é menos cativa ao ressentimento. Olhou assombrado, mordendo os beiços. Entretanto, Garcia inclinou-se ainda para beijar outra vez o cadáver; mas então não pôde mais. O beijo rebentou em soluços, e os olhos não puderam conter as lágrimas, que vieram em borbotões, lágrimas de amor calado, e irremediável desespero. Fortunato, à porta, onde ficara,  saboreou  tranquilo  essa  explosão  de  dor  moral  que  foi  longa,  muito  longa,
deliciosamente longa.

segunda-feira, 25 de julho de 2016

O Poço e o Pêndulo - Edgar Allan Poe


Aqui por muito tempo os impiedosos torturadores nutriram o insaciável furor da turba pelo sangue dos inocentes. Agora que a pátria está a salvo, e o antro fúnebre foi destruído, onde antes havia morte surgem vida e bem-estar. (Quadra composta para os portões de um mercado a ser erguido no local onde ficava o Clube dos Jacobinos, em Paris.) Eu  estava  esgotado  —  mortalmente  esgotado  por  aquela  longa  agonia;  e quando enfim me desataram, e foi-me dada a permissão de sentar, percebi que os sentidos me faltavam. A sentença — a pavorosa sentença de morte —  foi  a  última  de  distinta  articulação  a  chegar  aos  meus  ouvidos.  Depois disso,  o  som  das  vozes  inquisitoriais  pareceu  fundir-se  em  um  único murmúrio vago e onírico. Ele transmitia à alma a ideia de rotação — talvez por  associar-se  em  minha  imaginação  ao  rumor  de  uma  roda  de  moinho. Isso  por  um  curto  período,  apenas;  pois  em  breve  nada  mais  ouvi.  E contudo, por um tempo, eu vi; mas com que terrível exagero! Vi os lábios dos juízes em seus mantos negros. Pareceram-me brancos — mais brancos que  a  folha  em  que  traço  estas  palavras  —  e  finos  ao  ponto  mesmo  do grotesco; finos com a intensidade de suas expressões de intransigência — de inamovível determinação — de austero desprezo pelo suplício humano. Vi que  os  decretos  do  que  para  mim  era  o  Destino  ainda  saíam  por  aqueles lábios.  Vi  que  se  contorciam  em  mortal  elocução.  Vi  que  formavam  as sílabas  do  meu  nome;  e  estremeci,  pois  som  nenhum  adveio.  Vi  também, por  alguns  momentos  de  horror  delirante,  a  suave  e  quase  imperceptível ondulação dos reposteiros cor de sable que revestiam as paredes da sala. E então  meu  olhar  recaiu  sobre  as  sete  velas  altas  em  cima  da  mesa.  No início, exibiam o aspecto da caridade, e pareciam esguios anjos brancos que me  salvariam;  mas  então,  de  repente,  a  náusea  mais  mortífera  tomou conta  de  meu  espírito,  e  senti  cada  fibra  do  corpo  vibrar  como  se  eu houvesse  tocado  o  fio  de  uma  pilha  galvânica,  enquanto  as  formas angelicais  tornavam-se  espectros  sem  sentido,  com  cabeças  de  fogo,  e  vi que dali nenhum conforto adviria. E então insinuou-se em minha imaginação, como uma rica nota musical, o pensamento do doce descanso que devia ser o  túmulo.  O  pensamento  se  insinuou  vagaroso  e  furtivo,  e  pareceu transcorrer  longo  tempo  antes  que  atingisse  a  plena  apreciação;  mas  no exato  momento  em  que  meu  espírito  enfim  o  sentiu  e  o  acolheu propriamente,  as  figuras  dos  juízes  desvaneceram,  como  que  por  mágica, diante de meus olhos; as longas velas mergulharam no vazio; suas chamas se  extinguiram  por  completo;  o  negror  das  trevas  sobreveio;  todas  as sensações  pareceram  tragadas  num  assalto  violento  e  furioso  como  o  da alma pelo Hades. Então o universo se tornou silêncio, imobilidade e noite.

Desmaiara; mas mesmo assim não direi que perdi de todo a consciência. O  que  dela  restava  não  tentarei  definir,  nem  sequer  descrever;  contudo, nem tudo estava perdido. No sono mais profundo — não! No delírio — não! Em um desmaio — não! Na morte — não! até mesmo no túmulo, nem  tudo está  perdido.  Despertando  do  mais  profundo  dos  sonos,  rompemos  a  teiadiáfana de algum sonho. E contudo, um segundo depois (por mais frágil que pudesse  ser  a  teia),  não  lembramos  de  ter  sonhado.  No  regresso  à  vida após  o  desfalecimento  há  dois  estágios;  primeiro,  o  da  sensação  de existência mental ou espiritual; segundo, o da sensação de existência física. Parece  provável  que,  ao  atingir  esse  segundo  estágio,  se  pudéssemos recordar  as  impressões  do  primeiro,  deveríamos  julgar  essas  impressões eloquentes  em  lembranças  do  abismo  que  jaz  além.  E  esse  abismo  é  —  o quê?  Como  de  algum  modo  distinguir  suas  sombras  daquelas  que  há  na tumba?  Mas  e  se  as  impressões  do  que  denominei  como  primeiro  estágio não  são,  voluntariamente,  recordadas,  acaso,  após  um  longo  intervalo,  elas não  voltam  mesmo  sem  ser  convidadas,  enquanto  imaginamos  admirados de  onde  podem  ter  surgido?  Aquele  que  jamais  desfaleceu,  não  é  ele  que encontra  palácios  estranhos  e  rostos  perturbadoramente  familiares  nas brasas incandescentes; não é ele que contempla, flutuando em pleno ar, as tristes  visões  que  à  maioria  são  vedadas;  não  é  ele  que  pondera  sobre  o perfume  de  alguma  flor  incomum  —  não  é  ele  cujo  cérebro  fica  mais  e mais  atônito  com  o  significado  de  alguma  cadência  musical  que  nunca antes prendeu sua atenção.
Em  meio  aos  frequentes  e  diligentes  esforços  por  lembrar;  em  meio  às obstinadas  lutas  para  recuperar  alguma  recordação  do  estado  de  aparente inexistência  em  que  minha  alma  mergulhara,  houve  momentos  em  que sonhei  com  o  êxito;  houve  períodos  breves,  muito  breves,  em  que  conjurei lembranças  que,  segundo  me  assegura  a  razão  lúcida  de  uma  época posterior,  poderiam  referir-se  apenas  àquela  condição  de  aparente inconsciência.  Essas  sombras  de  memória  evocam,  vagamente,  figuras altas  que  me  ergueram  e  me  carregaram  em  silêncio,  descendo  — descendo — descendo mais —, até que uma medonha vertigem me oprimiu ante a mera ideia da natureza interminável da descida. Evocam também um vago  horror  em  meu  coração,  por  conta  da  anormal  tranquilidade  desse mesmo  coração.  Então  segue-se  uma  sensação  de  súbita  imobilidade  de todas  as  coisas;  como  se  aqueles  que  me  carregavam  (um  cortejo espectral!)  houvessem  ultrapassado,  em  sua  descida,  os  limites  do ilimitado, e parado com a exaustão do esforço hercúleo. Depois disso vêm- me  à  mente  horizontalidade  e  umidade;  e  então  tudo  é insanidade  —  a insanidade de uma lembrança se insinua em meio a coisas proibidas. Muito  subitamente  regressaram-me  à  alma  movimento  e  som  —  o tumultuoso  movimento  do  coração  e,  aos  meus  ouvidos,  o  som  de  seu batimento. Então uma pausa em que tudo é vácuo. Então outra vez som, e movimento,  e  tato  —  uma  sensação  de  formigamento  permeando  meu corpo.  Então  a  mera  consciência  da  existência,  sem  pensamento  — condição  que  durou  longamente.  Então,  muito  subitamente, pensamento,  e trêmulo terror, e obstinado esforço de compreender meu verdadeiro estado.
Então  um  forte  desejo  de  mergulhar  na  insensibilidade.  Então  uma  violenta reanimação  da  alma  e  um  vitorioso  esforço  de  me  mover.  E  depois  a completa  lembrança  do  julgamento,  dos  juízes,  dos  negros  reposteiros,  da sentença,  do  esgotamento,  do  desfalecimento.  Então  o  total  esquecimento de tudo que se seguiu; de tudo que um dia posterior e grande obstinação deesforço possibilitaram-me vagamente recordar. Até  esse  momento,  eu  não  abrira  os  olhos.  Senti  que  jazia  de  costas, desatado.  Estiquei  a  mão,  e  ela  caiu  pesadamente  sobre  alguma  coisa úmida  e  dura.  Deixei-me  aí  ficar  por  vários  minutos,  enquanto  me empenhava em imaginar onde e no que podia estar. Ansiava, e contudo não ousava, empregar a visão. Aterrorizava-me o impacto inicial dos objetos em torno  de  mim.  Não  que  eu  temesse  ver  coisas  horríveis,  mas  fui  invadido por  um  crescente  pavor  de  não  haver nada  para  ver.  Finalmente,  com descontrolado desespero no coração, abri rapidamente os olhos. Meus piores pensamentos  foram,  então,  confirmados.  O  negror  da  noite  eterna  me engolfava. Lutei para respirar. A intensidade das trevas parecia me oprimir e  sufocar.  A  atmosfera  era  intoleravelmente  opressiva.  Continuei  deitado, imóvel,  e  esforcei-me  por  exercitar  a  razão.  Evoquei  em  minha  mente  o processo  inquisitorial,  e  tentei  a  partir  desse  ponto  inferir  minha  real condição. A sentença fora proferida; e a mim me pareceu que um intervalo muito  longo  de  tempo  transcorrera  desde  então.  Contudo,  nem  sequer  por um  momento  supus  que  estivesse  morto  de  fato.  Tal  suposição,  não
obstante  o  que  lemos  na  ficção,  é  completamente  inconsistente  com  a existência  real;  —  mas  onde  e  em  que  estado  eu  me  encontrava?  Os condenados à morte, eu sabia, eram normalmente executados nos autos de fé,  e  um  desses  fora  realizado  na  exata  noite  de  meu  julgamento.  Estaria eu  sendo  mantido  sob  custódia  em  meu  calabouço,  a  fim  de  aguardar  o sacrifício seguinte, que não teria lugar senão dali a muitos meses? Percebi na mesma hora que tal não podia ser. As vítimas haviam sido reclamadas de imediato. Além do mais, meu calabouço, assim como as celas de todos os  condenados  em  Toledo,  tinha  piso  de  pedra,  e  a  luz  não  era completamente excluída. Uma  assustadora  ideia  agora  de  repente  fez  o  sangue  fluir incontrolavelmente em meu coração e, por um breve período, mais uma vez recaí  na  insensibilidade.  Assim  que  me  recuperei,  fiquei  de  pé  na  mesma hora,  tremendo  convulsivamente  em  cada  fibra.  Agitei  os  braços freneticamente  acima  e  em  torno  de  mim,  em  todas  as  direções.  Nada senti;  contudo,  hesitava  em  dar  um  passo,  com  receio  de  ser  bloqueado pelas  paredes  de  uma tumba.  O  suor  brotava  de  cada  poro,  e  formava grossas  gotas  em  minha  fronte.  A  agonia  do  suspense  cresceu  até  se tornar intolerável e cuidadosamente me movi para a frente, com os braços estendidos,  e  meus  olhos  esforçando-se  em  suas  órbitas,  na  esperança  de captar  algum  débil  raio  de  luz.  Avancei  vários  passos;  mas  o  negror  e  o vazio  continuaram.  Respirei  mais  facilmente.  Parecia  evidente  que  o  meu não era, ao menos, o mais hediondo dos destinos.
E então, conforme continuava a andar cautelosamente adiante, invadiu-me a memória, num tropel, uma infinidade de vagos rumores sobre os horrores de  Toledo.  Daqueles  calabouços  estranhas  coisas  se  contavam  —  fábulas,eu  sempre  as  reputara  —,  porém  por  demais  estranhas,  e  por  demais macabras, para serem repetidas, salvo num sussurro. Teria sido eu deixado para  morrer  de  fome  nesse  mundo  subterrâneo  de  trevas;  ou  que  destino, talvez  ainda  mais  assustador,  me  aguardava?  Que  o  resultado  seria  a morte,  e  morte  de  uma  pungência  mais  do  que  costumeira,  eu  conhecia bem demais o caráter de meus juízes para duvidar. O modo e o momento eram tudo que me ocupava ou distraía.
Minhas mãos estendidas enfim encontraram alguma obstrução sólida. Era uma parede, em alvenaria de pedra, aparentemente — muito lisa, musgosa e  fria.  Acompanhei  sua  superfície;  pisando  com toda  a  cuidadosa desconfiança  que  determinados  relatos  antigos  haviam  me  inspirado.  Esse processo,  entretanto,  não  me  possibilitou  meio  algum  de  averiguar  as dimensões de meu calabouço; uma vez que podia completar seu circuito, e regressar  ao  ponto  onde  começara,  sem dar-me  conta  do  fato;  tão perfeitamente  uniforme  parecia  a  parede.  Procurei  desse  modo  a faca  que havia em meu bolso, quando levado à câmara inquisitorial; mas ela se fora; minhas  roupas haviam  sido  trocadas  por  um  camisolão  de  sarja  grosseira. Meu  pensamento  fora  forçar  a lâmina  em  alguma  minúscula  fenda  da alvenaria,  de  modo  a  identificar  o  ponto  de  partida.  A dificuldade,  todavia, era  apenas  trivial;  muito  embora,  na  desordem  de  minha  imaginação, parecesse em princípio insuperável. Rasguei um pedaço da bainha em meu robe e dispus a tira de comprido, em ângulo reto com a parede. Ao tatear meu  caminho  em  torno  da  prisão,  não  teria como  deixar  de  encontrar  o trapo quando completasse o circuito. Assim, ao menos, raciocinei: mas eu não contara com a extensão do calabouço, ou com minha própria debilidade. O  chão  era  úmido e escorregadio.  Cambaleei  para  a  frente  por  algum tempo,  até  pisar  em  falso  e  cair.  Minha fadiga  excessiva  induziu-me  a permanecer prostrado; e ali deitado o sono em breve se apossou de mim. Ao  despertar,  e  esticando  um  braço,  encontrei  ao  meu  lado  um  pão  e uma  jarra  com água.  Estava  exausto  demais  para  refletir  sobre  essa circunstância,  mas  comi  e  bebi  com avidez.  Pouco  depois,  retomei  meu reconhecimento do circuito da prisão, e com grande labor, cheguei enfim ao pedaço  de  sarja.  Até  o  momento  de  minha  queda,  eu  contara  cinquenta  e dois  passos,  e,  após  retomar  minha  caminhada,  contara  quarenta  e  oito mais  —  quando cheguei  ao  pedaço  de  pano.  Havia  ao  todo,  desse  modo, cem passos; e, considerando cada dois passos como um metro, inferi que o calabouço tinha um perímetro de cem metros. Eu havia topado, entretanto, com muitos ângulos na parede, e assim não podia formar suposição alguma sobre o formato da cripta; pois uma cripta era o que eu não podia deixar de supor que fosse. Eu  tinha  pouco propósito  —  certamente  nenhuma  esperança  —  nessas investigações;  mas  uma  vaga curiosidade  impeliu-me  a  continuá-las. Deixando por ora a parede, decidi cruzar a área  de  meu cárcere.  No  início, procedi  com  extrema  cautela,  pois  o  chão,  embora  aparentemente  de material  sólido,  era  traiçoeiro  devido  ao  musgo.  Finalmente,  entretanto,tomei coragem, e não hesitei em pisar com firmeza — empenhando-me em atravessar  numa  linha  a  mais  reta  possível. Avançara  dez  ou  doze  passos dessa  maneira  quando  o  que  restava  da  bainha  rasgada  em  meu robe enroscou-se entre minhas pernas. Pisei nela e caí violentamente de bruços.Na  confusão, preocupando-me  com  minha  queda,  não  me  dei  conta imediatamente  de  uma  circunstância  um tanto  alarmante,  que  contudo, poucos segundos depois, e enquanto eu ainda jazia prostrado, prendeu minha atenção. Foi o seguinte: meu queixo estava pousado no chão da prisão, mas meus lábios,  e  a  parte  superior  de  minha  cabeça,  embora  aparentemente com  uma  elevação  inferior à  do  queixo,  não  tocavam  coisa  alguma.  Ao mesmo tempo, minha testa parecia banhada em um vapor viscoso, e o odor peculiar  de  fungo  em  decomposição  subia  às  minhas  narinas.  Estiquei  o
braço,  e  estremeci  ao  descobrir  que  caíra  bem  na  beirada  de  um  poço circular,  cuja  extensão, é  claro,  eu  não  tinha  meios  de  averiguar  no momento.  Tateando  a  alvenaria  logo  abaixo  da extremidade,  consegui deslocar um pequeno fragmento, e deixei que caísse no abismo. Por vários
segundos,  estiquei  os  ouvidos  para  suas  reverberações  conforme  colidia contra  as  laterais  da garganta  em  sua  queda:  finalmente,  sobreveio  um lúgubre  mergulho  na  água,  seguido  de  ecos elevados.  No  mesmo  instante, escutei um ruído similar ao de uma porta no alto sendo rapidamente aberta, e  prontamente  fechada,  enquanto  um  tênue  raio  de  luz  tremeluziu subitamente através da escuridão, e subitamente sumiu. Enxerguei  claramente  a  sina  que  me  havia  sido  preparada  e  dei graças em silêncio pelo oportuno acidente que me possibilitara dela escapar. Mais um passo antes de minha queda, e o mundo não mais me veria. E a morte que acabara de evitar era exatamente o que eu costumava encarar como a típica  história  fantasiosa  e  pitoresca  relativa  à  Inquisição.  Às  vítimas de sua  tirania  cabia  a  escolha  da  morte  com  suas  mais  desesperadoras agonias  ou  da  morte com  seus  mais  hediondos  horrores  morais.  A  mim fora  reservada  esta  última.  O  longo sofrimento  abalara  meus  nervos,  a ponto  de  eu  estremecer  ao  som  de  minha  própria  voz  e me tornar  em todos  os  aspectos  uma  vítima  sob  medida  para  as  variedades  de  tortura que me aguardavam. Tremendo  em  cada  membro  do  corpo,  tateei  meu  caminho  de  volta  à parede  — determinado  a  aí  perecer,  em  lugar  de  me  arriscar  aos  terrores dos  poços  cuja  existência  eu agora  imaginava  haver  em  variados  pontos espalhados  pelo  calabouço.  Em  outras  condições de espírito,  talvez  tivesse a coragem de dar cabo de minha miséria na mesma hora, mergulhando num daqueles  abismos;  mas  nesse  momento  eu  era  o  mais  rematado  dos covardes. E tampouco esquecia o que havia lido a respeito desses poços — que  a  extinção súbita  da  vida  não  fazia  parte  de  seu  mais  horrendo desígnio.
A  agitação  de  espírito  manteve-me  acordado  por  muitas  horas intermináveis;  mas  finalmente voltei  a  adormecer.  Ao  despertar,  descobri ao  meu  lado,  como  antes,  um  pão  e  uma  jarra  de água.  Uma  sedeexcruciante  me  consumia,  e  esvaziei  o  recipiente  de  um  só  trago.  Devia haver alguma  droga  ali  —  pois,  mal  terminei  de  beber,  senti  um  torpor irresistível.  Um  sono profundo  se  apossou  de  mim  —  um  sono  que  era como a morte. Quanto tempo durou é algo que decerto não sei dizer; mas quando, mais uma vez, abri os olhos, os objetos em torno de mim estavam
visíveis.  Por  meio  de  uma  fulguração  difusa  e  sulfurosa,  cuja  origem  não pude  inicialmente determinar,  fui  capaz  de  ver  a  extensão  e  o  aspecto  da prisão. Quanto  ao  tamanho  eu  me equivocara  redondamente.  O  perímetro completo de suas paredes não excedia os vinte e cinco metros. Por alguns minutos, o fato ocasionou-me um mundo de vãs preocupações; vãs, de fato — pois o que podia ser menos importante, nas terríveis circunstâncias em que  me  encontrava,  do  que as  meras  dimensões  de  meu  calabouço?  Mas minha  alma  assumiu  um  descontrolado  interesse em  banalidades  e concentrei-me  diligentemente  em  esclarecer  o  erro  que  havia  cometido ao fazer  minhas  medições.  A  verdade  enfim  se  me  afigurou.  Em  minha primeira tentativa de exploração, eu contara cinquenta e dois passos até o momento  da  queda:  eu  devia  ali  estar  a  um ou  dois  passos  do  pedaço  de sarja;  na  verdade,  eu  praticamente  completara  o  perímetro  da cripta.  E então  adormeci  —  e,  ao  acordar,  devo  ter  refeito  meus  passos  —, pressupondo  assim o  perímetro  como  tendo  quase  o  dobro  do  que  de  fato tinha. Minha confusão mental impediu-me de observar que iniciei o percurso tendo a parede à esquerda, e que o terminei com a parede à minha direita. Eu  havia  sido  iludido,  também,  com  respeito  à  forma  do  cárcere. Tateando  meu caminho,  topara  com  diversos  ângulos,  e  assim  inferi  uma ideia de grande irregularidade; tão poderoso é o efeito da escuridão absoluta ao  despertarmos  da  letargia  ou  do  sono!  Os  ângulos nada  mais  eram  que umas  poucas  depressões  ligeiras,  ou  nichos,  a  intervalos  variáveis.  O formato  geral  da  prisão  era  quadrado.  O  que  eu  tomara  por  alvenaria parecia  agora  ser  ferro, ou  algum  outro  metal,  em  imensas  placas,  cujas suturas ou junções ocasionavam a depressão. A superfície inteira do recinto de  metal  estava  grosseiramente  pintada  com  todas  essas  lucubrações
hediondas  e  repulsivas  às  quais  a  sepulcral  superstição  dos  monges  havia dado  origem. Figuras diabólicas  em  posturas  ameaçadoras,  com  formas esqueléticas  e  outras  imagens  de  fato  ainda mais  assustadoras, espalhavam-se  e  desfiguravam  as  paredes.  Observei  que  os  contornos  das monstruosidades  eram  suficientemente  distintos,  mas  que  as  cores pareciam  esmaecidas  e borradas,  como  que  por  efeito  da  umidade  da atmosfera.  Eu  agora  notava  também  o  chão, que era  de  pedra.  No  centro esbeiçava-se  o  poço  circular  de  cujas  mandíbulas  eu  escapara;  mas era  o único no calabouço. Tudo isso enxerguei indistintamente e com grande esforço — pois minha situação  pessoal  se  alterara  grandemente  durante  o  sono.  Eu  agora  jazia deitado  de  costas,  e com  o  corpo  inteiro,  em  algum  tipo  de  estrutura  de madeira  pouco  elevada.  Prendia-me fortemente  a  isso  uma  longa  correiaparecida  com  uma  sobrecilha.  Ela  passava  em  muitas voltas  pelos  meus membros e meu corpo, deixando em liberdade apenas minha cabeça, e meu braço esquerdo,  numa  extensão  tal  que  eu  pudesse,  por  meio  de  enormeesforço,  servir-me  da comida em  um  prato  de  cerâmica  que  jazia  ao  meu lado no chão. Vi, para meu horror, que a jarra fora retirada. Digo para meu horror  —  pois  a  mim  me  consumia  uma  sede  intolerável.  Sede  que aparentemente  era  parte  do  plano  de  meus  algozes  estimular  —  pois  a comida no prato era uma carne de tempero pungente.
Olhando para cima, perscrutei o teto de minha prisão. Ficava a cerca de dez ou doze metros de altura, e era construído  bem  à  feição  das  paredes. Em  um  de  seus  painéis  uma  figura  muito  singular  captou  minha  completa atenção. Era a figura pintada do Tempo como é normalmente representado, salvo que, em lugar da foice, segurava o que, a um olhar casual, supus ser a  imagem  pintada  de  um  imenso  pêndulo,  tal  como  se  veem  em  relógios antigos.  Havia  alguma  coisa,  entretanto,  na  aparência  dessa  máquina  que me  levou  a  olhar  para  ela  mais  atentamente.  Enquanto  eu  a  fitava diretamente  (pois  sua  posição  era  imediatamente  acima  de  onde  me encontrava),  julguei  vê-la  se  movimentar.  Um  instante  depois  minha imaginação  foi  confirmada.  Seu  vaivém  foi  breve,  e,  é  claro,  vagaroso. Fiquei olhando por alguns minutos para aquilo, em certa medida com medo, porém  antes  admirado.  Cansando-me  enfim  de  observar  seu  moroso movimento, desviei os olhos para os outros objetos na cela. Um  ligeiro  ruído  chamou  minha  atenção  e,  olhando  para  baixo,  vi inúmeros ratos enormes passando pelo chão. Haviam saído do poço, que eu mal  podia  enxergar  à  minha  direita.  Mesmo  então,  enquanto  os  observava, eles  subiam  aos  bandos,  apressados,  com  olhos  famintos,  atiçados  pelo cheiro  da  carne.  Desse  momento  em  diante  foi-me  exigido  tremendo esforço e concentração para espantá-los. Isso talvez tenha se dado meia hora antes, ou quem sabe uma hora (pois me era impossível manter uma percepção senão imperfeita do tempo), que eu  me  pegasse  dirigindo  o  olhar  outra  vez  para  o  alto.  O  que  vi  nesse momento  ocasionou-me  confusão  e  assombro.  O  vaivém  do  pêndulo aumentara em cerca de um metro de extensão. Como consequência natural, sua velocidade era também muito maior. Mas o que mais me perturbou foi a ideia de que havia perceptivelmente descido.  Eu  observava  agora  —  com que  horror  é  desnecessário  dizer  —  que  sua  extremidade  inferior  era formada  por  um  crescente  de  aço  cintilante,  com  cerca  de  trinta centímetros  de  extensão  de  um  corno  a  outro;  os  cornos  curvados  para  o alto,  e  a  parte  de  baixo  evidentemente  tão  afiada  quanto  uma  navalha  de barbeiro. Como uma navalha igualmente, parecia maciça e pesada, afilando- se a partir do gume em uma sólida e larga estrutura acima. O instrumento era afixado a uma pesada barra de bronze e a peça toda sibilava  em  suas oscilações através do ar. Não  havia  mais  como  duvidar  da  sina  para  mim  preparada  pela engenhosidade  em  tortura  dos  monges.  Minha  descoberta  do  poço  chegaraao  conhecimento  dos  inquisidores  — o  poço,  cujos  horrores  haviam  sido destinados  a  um  herege  ousado  como  eu  —, o  poço,  emblemático  do inferno,  e  disseminado  de  boca  em  boca  como  a  Ultima  Thule  de  todas suas  punições.  O  mergulho  nesse  poço,  eu  o  evitara  apenas  pelo  mais casual  dos  acidentes,  e  tinha  consciência  de  que  a  surpresa,  ou  uma armadilha de tormento, compunha importante elemento de todo o grotesco dessas  mortes  no  calabouço.  Tendo-me  furtado  à  queda,  não  fazia  parte dos planos do demônio empurrar-me para  abismo; e assim (por não haver alternativa)  uma  aniquilação  diferente  e  mais  branda  me  aguardava.  Mais branda!  Quase  sorri  em  minha  agonia  ao  pensamento  de  aplicar  dessa forma um tal termo. De  que  adianta  contar  sobre  as  horas  intermináveis  de  horror  mais  do que  mortal,  durante  as  quais  fiquei  a  enumerar  as  sibilantes  oscilações  do aço!  Polegada  por  polegada  —  linha  por  linha  —  com  um  avanço descendente  apreciável  apenas  a  intervalos  que  se  davam  como  eras  — descendo,  descendo!  Dias  se  passaram  —  podia  ter  acontecido  de  muitos dias  terem  se  passado  —  até  se  deslocar  tão  próximo  de  mim  que  me abanava  com  seu  acre  hálito.  O  odor  do  aço  afiado  invadiu-me  as  narinas. Orei  —  enfastiei  os  céus  de  tanto  orar  por  uma  descida  mais  rápida.  A fúria da loucura se apossou progressivamente de mim e lutei para forçar o corpo  contra  o  vaivém  da  temível  cimitarra.  E  então  fiquei  subitamente calmo, e aguardei sorrindo a morte cintilante, como uma criança diante de algum raro bibelô. Houve mais um outro intervalo de total insensibilidade; foi breve; pois, ao voltar  de  novo  à  vida,  mais  nenhuma  descida  perceptível  do  pêndulo  se fazia  notar.  Mas  podia  acontecer  de  ter  sido  longo  —  pois  eu  sabia  haver demônios  observando  meu  desfalecimento,  e  que  poderiam  se  comprazer em  deter  as  oscilações.  Ao  recobrar  os  sentidos,  também,  senti-me deveras  —  ah,  indizivelmente  —  esgotado  e  fraco,  como  que  a  voltar  de longa  inanição.  Mesmo  em  meio  às  agonias  desse  período,  a  natureza humana  clamava  por  alimento.  Com  doloroso  esforço,  estendi  o  braço esquerdo  o  mais  longe  que  minhas  correias  permitiam,  e  me  apossei  da pequena  sobra  que  os  ratos  haviam  me  deixado.  Ao  enfiar  a  porção  entre
meus lábios, invadiu-me a mente um pensamento incipiente de alegria — de esperança.  E  contudo,  o  que  queria eu  com  a  esperança?  Foi,  como  disse, um  pensamento  incipiente  —  o  homem  tem  tantos  desses  que  jamais  são completados. Senti que era de alegria — de esperança; mas senti também que  havia  perecido  já  ao  se  formar.  Em  vão  lutei  por  completá-lo  —  por recuperá-lo.  O  sofrimento  prolongado  quase  aniquilara  todas  as  minhas faculdades comuns de pensamento. Eu era um imbecil — um idiota.
A  oscilação  do  pêndulo  se  dava  em  ângulo  reto  com  o  comprimento  de meu  corpo.  Vi  que  o  crescente  estava  destinado  a  cruzar  a  região  do coração. Iria desfiar a sarja de meu robe — iria voltar e repetir a operação —  outra  vez  —  e  outra  vez.  Não  obstante  o  vaivém  terrivelmente  extenso (cerca de dez metros ou mais) e o vigor sibilante de sua descida, suficientepara  cindir  as  próprias  paredes  de  ferro,  ainda  assim  o  esfiapar  de  minha roupa  seria  tudo  que,  por  vários  minutos,  ele  realizaria.  E,  ao  me  sobrevir esse  pensamento,  hesitei.  Não  ousava  ir  além  dessa  reflexão.  Demorei-me nele com uma atenção obstinada — como se, ao fazê-lo, pudesse manter aí a  descida  do  aço.  Forcei-me  a  ponderar  sobre  o  som  do  crescente  quando passasse através do pano — sobre a peculiar sensação de estremecimento que  a  fricção  de  tecido  produz  nos  nervos.  E  ponderei  sobre  toda  essa frivolidade até ficar com os nervos à flor da pele.
Descendo — descendo lenta e regularmente. Extraí um prazer maníaco de contrastar  seu  movimento  para  baixo  com  sua  velocidade  lateral.  Para  a direita — para a esquerda — por toda parte — guinchando como um espírito maldito!  em  meu  íntimo,  com  o  passo  furtivo  do  tigre!  E  alternadamente ria e gemia, conforme uma ou outra ideia ganhava a predominância. Descendo — resolutamente, descendo inexoravelmente! Ele vibrava a um palmo  de  meu  peito!  Lutei  violentamente  —  furiosamente  —  para  liberar meu  braço  esquerdo.  Estava  livre  apenas  do  cotovelo  à  mão.  Eu  conseguia esticá-la,  pegando  do  prato  ao  meu  lado  e  levando-a  à  boca,  com  grande esforço,  mas  nada  além  disso.  Pudesse  eu  ter  rompido  as  amarras  acima do cotovelo, teria agarrado e tentado deter o pêndulo. Poderia perfeitamente ter tentado deter uma avalanche! Descendo — ainda incessantemente — ainda descendo, implacavelmente! Eu  ofegava  e  me  contorcia  a  cada  vibração.  Encolhia  convulsivamente  a cada  oscilação.  Meus  olhos  acompanhavam  esses  ciclos  para  os  lados  ou para  cima  com  a  avidez  do  mais  absurdo  desespero;  cerravam-se espasmodicamente  ao  vê-lo  descer,  embora  a  morte  teria  sido  um  alívio, ah,  quão  inefável!  Mesmo  assim,  eu  estremecia  em  cada  nervo  de  pensar quão  insignificante  bastava  ser  a  descida  do  maquinário  para  precipitar aquele  machado  afiado  e  cintilante  contra  meu  peito.  Era  a esperança  que impelia  os  nervos  a  tremer  —  o  corpo  a  encolher.  Era  a  esperança  —  a esperança que triunfa na tortura — que sussurra para o condenado à morte até mesmo nos calabouços da Inquisição. Percebi que mais dez ou doze oscilações trariam a lâmina a um contato efetivo  com  meu  robe  —  e  ao  observar  isso  de  repente  baixou  sobre  meu
espírito toda a tranquilidade lúcida, serena, do desespero. Pela primeira vez em  muitas  horas  —  ou  talvez  dias  —  eu pensava. Agora me ocorria que a amarra, ou sobrecilha, que me cingia era a única coisa. Eu não estava preso por  nenhuma  outra  atadura.  O  primeiro  golpe  transversal  daquela  navalha em  meia-lua  contra  qualquer  parte  da  cinta  a  soltaria  de  tal  modo  que talvez eu pudesse livrá-la de meu corpo com o uso da mão esquerda. Mas quão  terrível,  nesse  caso,  a  proximidade  da  lâmina!  O  resultado  do  mais leve  esforço,  quão  mortal!  Seria  plausível,  além  do  mais,  que  os subordinados  do  torturador  não  tivessem  previsto  e  se  precavido  contra essa  possibilidade?  Haveria  alguma  probabilidade  de  que  a  faixa  cruzasse meu peito no trajeto do pêndulo? Receando ver minha  débil  e,  ao  que  tudo indicava,  derradeira  esperança  frustrada,  ergui  ao  máximo  a  cabeça  para obter  uma  visão  desobstruída  de  meu  tórax.  A  sobrecilha  envolvia estreitamente meus membros e meu corpo em todas as direções — exceto no caminho do crescente aniquilador.

Mal  deixara  cair  a  cabeça  para  trás  em  sua  posição  original,  quando lampejou  em  minha mente  o  que  não  posso  descrever  melhor  do  que  a metade  informe  daquela  ideia  de libertação  à  qual  aludi  previamente,  e  da qual apenas uma metade flutuava incertamente por meu cérebro quando eu levava a comida aos meus lábios em fogo. O pensamento todo agora se me apresentava — fraco, no limiar da insanidade, no limiar da materialidade — mas ainda assim completo. Procedi de pronto a tentar sua execução, com a energia nervosa do desespero. Havia horas que a proximidade imediata da estrutura baixa de madeira na qual  eu  jazia  literalmente  enxameava de  ratos.  Selvagens,  ousados, famintos — seus olhos vermelhos brilhando em minha direção como se só esperassem a imobilidade de minha parte para tornar-me sua presa. “Com que alimento”, pensei eu, “acostumaram-se eles no poço?” Haviam devorado, a despeito de todos os meus esforços para impedi-los, tudo, exceto um pequeno resto do que continha o prato. Eu me habituara aum movimento de sobe e desce, um abano de mão, na imediação do prato; e, com o tempo, a uniformidade inconsciente do movimento privou-o de seu efeito. Em sua voracidade, as criaturas daninhas frequentemente cravavam suas  presas  afiadas  em  meus  dedos.  Com  as  partículas  da  vianda gordurosa e condimentada que ainda restavam, esfreguei exaustivamente a correia em todos os pontos que fui capaz de alcançar; então, removendo a mão do piso, permaneci imóvel, quase sem respirar. 
No  início,  os  animais  famintos  ficaram  sobressaltados  e  atemorizados com  a  mudança  —  com a  cessação  de  movimento.  Recuaram  alarmados; muitos  buscaram  o  poço.  Mas  isso  durou apenas  um  instante.  Eu  não contara  em  vão  com  sua  voracidade.  Observando  que  continuava imóvel, um  ou  dois  mais  audaciosos  saltaram  sobre  o  estrado  e  farejaram  a sobrecilha.  Isso pareceu  a  deixa  para  um  tropel  generalizado.  Vieram correndo  do  poço  em  novos  bandos. Agarraram-se  à  madeira  —  correram sobre  ela  e  pularam  às  centenas  em  cima  de  mim.  O movimento  rítmico do  pêndulo  não  os  perturbou  nem  um  pouco.  Evitando  seus  golpes, ocupavam-se  com  a  amarra  besuntada.  Pululando  —  enxameando  sobre mim  em  amontoados cada  vez  maiores.  Contorcendo-se  por  minha garganta; seus lábios frios tocando os meus; eu quase sufocava com suas hordas  fervilhantes;  um  asco  para  o  qual  o  mundo  não  tem  nome intumesceu  meu  peito  e  enregelou,  com  uma  pesada  viscosidade,  meu coração. Contudo, mais um minuto e eu sentia que a luta chegaria ao fim.
Percebi  claramente  o  afrouxamento  da  amarra.  Sabia  que  em  mais  de  um ponto  ela  já  devia estar  partida.  Com  resolução  mais  do  que  humana permaneci imóvel. Eu  não  havia  errado  em meus  cálculos  —  eu  não  havia  suportado  aquilo em vão. Finalmente, senti que estava livre. A sobrecilha pendeu em tiras de meu  corpo.  Mas  os  golpes  do  pêndulo  já  se  precipitavam  sobre  meu  peito.  O  instrumento  atravessara  a  sarja  do  robe.  Cortara  até  a  camisa  de  linho que eu vestia por baixo. Duas vezes mais oscilou, e uma aguda sensação de dor  espicaçou  cada  nervo. Mas  o  momento  da  fuga  chegara.  Ao  abanar  amão, meus libertadores fugiram em tumulto. Com um movimento confiante —  cauteloso,  lateral,  contido  e  vagaroso  —  deslizei  do  abraço  da correia  e para fora do alcance da cimitarra. Naquele momento, ao menos, eu  estava livre.
Livre! — e nas garras da Inquisição! Nem bem deixei a madeira em meu leito  de  horror  e  passei ao  piso  de  pedra  da  prisão,  o  movimento  da máquina  infernal  cessou,  e  fiquei  assistindo, conforme  se  recolhia,  por alguma  força  invisível,  para  dentro  do  teto.  Foi  uma  lição  que aprendi  em desespero.  Cada  movimento  meu  era  sem  dúvida  observado.  Livre!  —  eu apenas escapara  da  morte  em  uma  forma  de  agonia  para  ser  confiado  a uma  outra  qualquer  pior que a  morte.  Com  esse  pensamento  passeei  os olhos  nervosamente  em  torno  pelas  barreiras de ferro  que  me  cercavam. 
Alguma  coisa  incomum  —  alguma  mudança  que,  de  início,  não  pude perceber  distintamente  —,  isso  era  óbvio,  havia  ocorrido  no  ambiente.  Por diversos  minutos  absorto  em  um  transe  trêmulo  entreguei-me  a conjecturas  vãs  e  desconexas.  No  transcorrer  desse  período  tomei consciência,  pela  primeira  vez,  da  origem  da  luz  sulfúrea  que  alumiava  a cela. Ela provinha de uma fissura, com cerca de um dedo de largura, que se estendia  por  todo  o  perímetro  da  prisão  na  base  das  paredes,  que  desse modo  pareciam,  e  de  fato  estavam,  completamente  separadas  do  piso. Tentei, mas certamente em vão, olhar através da abertura. Quando  me  levantava  após  a  tentativa,  o  mistério  da  alteração  na câmara veio-me subitamente à compreensão. Eu observara que, embora os contornos das figuras nas paredes fossem suficientemente nítidos, as cores contudo pareciam borradas e indefinidas. Mas essas cores haviam assumido agora,  e  assumiam  progressivamente,  a  cada  momento,  um  brilho assustador  e  mais  intenso,  que  emprestava  às  imagens  espectrais  e diabólicas um aspecto que teria talvez abalado nervos até mais firmes que os meus. Olhos demoníacos, de vivacidade selvagem e macabra, fuzilavam-me  de  mil  direções,  quando  nenhum  havia  sido  visível  antes,  e  cintilavam com o fantasmático fulgor de um fogo que eu era incapaz de forçar minha imaginação a interpretar como ilusão. Ilusão!  —  No  momento  em que  respirei  penetrou  em  minhas  narinas  o vapor  do  ferro  aquecido!  Um  odor  asfixiante tomou  conta  da  prisão!  Uma incandescência mais profunda ardia a cada momento naqueles olhos que  se  arregalavam  para  minhas  agonias!  Um  matiz  mais  rico  de escarlate  se  difundia  pelos horrores  de  sangue  ali  retratados.  Eu  ofegava! Tentava  respirar!  Não  restava  dúvida  quanto  ao que  tramavam  meus carrascos  —  ah!  os  mais  implacáveis!  ah!  os  mais  demoníacos  dos homens! Recuei do metal incandescente em direção ao centro da cela. Em meio aos pensamentos da iminente destruição pelo fogo, a ideia do frescor do poço invadiu minha alma como um bálsamo. Aproximei-me rapidamente de  sua  beirada  mortal.  Lancei  o  olhar  para  suas  profundezas.  O fulgor  do teto  inflamado  iluminava  seus  recessos  mais  ocultos.  E  contudo,  em  um momento de desvario, meu espírito se recusou a compreender o significado do que vi. Após um instante enfim aquilo se impôs — aquilo abriu caminho à  força  até  minha  alma  —  aquilo  ficou  marcado  a ferro  e  fogo  em  minha razão  trêmula.  Ah!  quem  dera  eu  tivesse  voz  para  falar!  —  ah! horror!  — ah!  qualquer  outro  horror  que  não  aquilo!  Com  um  uivo,  fugi  da  beirada,  e enterrei o rosto nas mãos — chorando amargamente.
O calor aumentou rápido, e mais uma vez ergui o rosto, tremendo como que num acesso de febre. Uma segunda mudança se efetuara na cela — e agora a mudança era obviamente na forma. Como antes, foi em vão que de início  empenhei-me  em  avaliar  ou  compreender  o  que  estava ocorrendo. Mas  a  dúvida  não  persistiu  por  muito  tempo.  A  vingança  dos  inquisidores fora precipitada  por  minha  dupla  fuga,  e  pusera  um  basta  ao  meu  flerte com o Rei dos Terrores.
O recinto, antes, era quadrado. Agora eu via que dois  de  seus  ângulos  de  ferro  estavam  agudos  —  os  outros  dois, consequentemente,  obtusos.  A  assustadora  diferença  aumentava rapidamente com  uma  reverberação  grave,  um  som  de  gemido.  Em  um instante  o  ambiente  alterara  seu formato  para  o  de  um  losango.  Mas  a mudança não parou por aí — eu não esperava nem tampouco desejava que o  fizesse.  Eu  teria  sido  capaz  de  estreitar  as  paredes  vermelhas  junto ao
peito como se fossem as vestes da paz eterna. “Morte”, eu disse, “qualquer morte exceto o poço!” Tolo! como podia eu ignorar que era para  dentro  do poço que o ferro em brasa visava me impelir? Seria eu capaz de resistir a sua  incandescência?  ou,  mesmo  que  pudesse,  como  conseguiria resistir  a sua  pressão?  E  então,  cada  vez  mais  achatado  se  tornava  o  losango,  com uma rapidez  que  não  me  deixava  mais  tempo  algum  para  a  contemplação. Seu centro e, é claro, sua maior largura, debruçavam-se na beira da bocarra escancarada. Recuei — mas as paredes se fechando me empurravam para a frente, era inútil resistir. Até que por fim, para o meu corpo queimado e contraído, já não havia mais do que uma polegada onde pisar no sólido chão da  prisão.  Desisti  de lutar,  mas  a  agonia  de  minha  alma  buscou  desafogo em  um  agudo,  prolongado  e  derradeiro grito  de  desespero.  Senti  que cambaleava sobre a borda — desviei os olhos…
De  repente  o  burburinho  dissonante  de  vozes  humanas!  De  repente  o sopro  estridente  de inúmeras  cornetas!  De  repente  o  rangido  áspero  como de  mil  trovões!  As  paredes  ardentes recuaram!  Um  braço  se  esticou  para agarrar  o  meu  quando  eu  tombava,  desfalecendo,  dentro do  abismo.  Era  o do general Lasalle. O exército francês entrara em Toledo. A Inquisição caíra nas mãos de seus inimigos.