quarta-feira, 27 de julho de 2016

A causa secreta - Machado de Assis


Garcia, em pé, mirava e estalava as unhas; Fortunato, na cadeira de balanço, olhava para o teto; Maria Luísa, perto da janela, concluía um trabalho de agulha. Havia já cinco minutos que nenhum deles dizia nada. Tinham falado do dia, que estivera excelente, — de Catumbi, onde morava o casal Fortunato, e de uma casa de saúde, que adiante se explicará. Como os três  personagens  aqui presentes  estão  agora  mortos  e  enterrados,  tempo  é  de  contar  a história sem rebuço. Tinham falado também de outra coisa, além daquelas três, coisa tão feia e grave, que não lhes deixou muito gosto para tratar do dia, do bairro e da casa de saúde. Toda a conversação a  este  respeito  foi constrangida.  Agora  mesmo,  os  dedos  de  Maria  Luísa  parecem  ainda trêmulos, ao passo que há no rosto de Garcia uma expressão de severidade, que lhe não é habitual.  Em  verdade,  o  que  se passou  foi  de  tal  natureza,  que  para  fazê-lo  entender,  é preciso remontar à origem da situação.
Garcia tinha-se formado em medicina, no ano anterior, 1861. No de 1860, estando ainda na Escola, encontrou-se com Fortunato, pela primeira vez, à porta da Santa Casa; entrava, quando o outro saía. Fez-lhe impressão a figura; mas, ainda assim, tê-la-ia esquecido, se não fosse o segundo encontro, poucos dias depois. Morava na rua de D. Manuel. Uma de suasraras distrações era ir ao teatro de S. Januário, que ficava perto, entre essa rua e a praia; iauma  ou  duas  vezes  por  mês,  e  nunca  achava acima  de  quarenta  pessoas.  Só  os  mais intrépidos ousavam estender os passos até aquele recanto da cidade. Uma noite, estando nas cadeiras, apareceu ali Fortunato, e sentou-se ao pé dele.
A  peça  era  um  dramalhão,  cosido  a  facadas,  ouriçado  de  imprecações  e  remorsos;  mas Fortunato ouviu-a com singular interesse. Nos lances dolorosos, a atenção dele redobrava, os olhos iam avidamente de um personagem a outro, a tal ponto que o estudante suspeitou haver na peça reminiscências pessoais do vizinho. No fim do drama, veio uma farsa; mas Fortunato  não  esperou por  ela  e  saiu;  Garcia  saiu  atrás  dele.  Fortunato  foi  pelo  beco  do Cotovelo, rua de S. José, até o largo da Carioca. Ia devagar, cabisbaixo, parando às vezes, para dar uma bengalada em algum cão que dormia; o cão ficava ganindo e ele ia andando. No largo da Carioca entrou num tílburi, e seguiu para os lados da praça da Constituição. Garcia voltou para casa sem saber mais nada. Decorreram algumas semanas. Uma noite, eram nove horas, estava em casa, quando ouviu rumor de vozes na escada; desceu logo do sótão, onde morava, ao primeiro andar, onde vivia um empregado do arsenal de guerra. Era este, que alguns homens conduziam, escada acima,ensanguentado. O preto que o servia, acudiu a abrir a porta; o homem gemia, as vozes eram confusas, a luz pouca. Deposto o ferido na cama, Garcia disse que era preciso chamar um médico.
— Já aí vem um, acudiu alguém.
Garcia olhou: era o próprio homem da Santa Casa e do teatro. Imaginou que seria parente ou amigo do ferido; mas, rejeitou a suposição, desde que lhe ouvira perguntar se este tinha família ou pessoa próxima. Disse-lhe o preto que não, e ele assumiu a direção do serviço, pediu  às  pessoas  estranhas que  se  retirassem,  pagou  aos  carregadores,  e  deu  as  primeiras ordens. Sabendo que o Garcia era vizinho e estudante de medicina, pediu-lhe que ficasse para ajudar o médico. Em seguida contou o que se passara.
— Foi uma malta de capoeiras. Eu vinha do quartel de Moura, onde fui visitar um primo, quando ouvi  um  barulho  muito  grande,  e  logo  depois  um  ajuntamento.  Parece  que  eles feriram também a um sujeito que passava, e que entrou por um daqueles becos; mas eu só vi a este senhor, que atravessava a rua no momento em que um dos capoeiras, roçando por ele, meteu-lhe o punhal. Não caiu logo; disse onde morava, e, como era a dois passos, achei melhor trazê-lo.
— Conhecia-o antes? perguntou Garcia.
— Não, nunca o vi. Quem é?
— É um bom homem, empregado no arsenal de guerra. Chama-se Gouveia.
— Não sei quem é.
Médico e subdelegado vieram daí a pouco; fez-se o curativo, e tomaram-se as informações. O desconhecido declarou chamar-se Fortunato Gomes da Silveira, ser capitalista, solteiro, morador  em Catumbi.  A  ferida  foi  reconhecida  grave.  Durante  o  curativo,  ajudado  pelo estudante, Fortunato serviu  de  criado,  segurando  a  bacia,  a  vela,  os  panos,  sem  perturbar nada,  olhando friamente para  o  ferido,  que  gemia  muito.  No  fim,  entendeu-se particularmente  com  o médico, acompanhou-o  até  o  patamar  da  escada,  e  reiterou  ao subdelegado a declaração de estar pronto a auxiliar as pesquisas da polícia. Os dois saíram, ele e o estudante ficaram no quarto. Garcia  estava atônito.  Olhou  para  ele,  viu-o  sentar-se  tranquilamente,  estirar  as  pernas, meter as mãos nas algibeiras das calças, e fitar os olhos no ferido. Os olhos eram claros, cor de chumbo, moviam-se devagar, e tinham a expressão dura, seca e fria. Cara magra e pálida; uma tira estreita de barba, por baixo do queixo, e de uma têmpora a outra, curta, ruiva e rara. Teria  quarenta  anos.  De quando  em quando,  voltava-se  para  o  estudante,  e  perguntava alguma coisa acerca do ferido; mas tornava logo a olhar para ele, enquanto o rapaz lhe dava a resposta.  A  sensação  que  o estudante  recebia era de  repulsa  ao  mesmo  tempo  que  de curiosidade;  não  podia  negar  que estava  assistindo  a  um ato  de  rara  dedicação,  e  se  era desinteressado como parecia, não havia mais que aceitar o coração humano como um poço de mistérios.
Fortunato  saiu  pouco  antes  de  uma  hora;  voltou  nos  dias  seguintes,  mas  a  cura  fez-se depressa, e, antes de concluída, desapareceu sem dizer ao obsequiado onde morava. Foi o estudante que lhe deu as indicações do nome, rua e número.
— Vou agradecer-lhe a esmola que me fez, logo que possa sair, disse o convalescente. Correu a Catumbi daí a seis dias. Fortunato recebeu-o constrangido, ouviu impaciente as palavras de agradecimento, deu-lhe uma resposta enfastiada e acabou batendo com as borlas do chambre no joelho. Gouveia, defronte dele, sentado e calado, alisava o chapéu com os dedos, levantando os olhos de quando em quando, sem achar mais nada que dizer. No fim de dez minutos, pediu licença para sair, e saiu.
— Cuidado com os capoeiras! disse-lhe o dono da casa, rindo-se.
O  pobre-diabo  saiu  de  lá  mortificado,  humilhado,  mastigando  a  custo  o  desdém, forcejando por esquecê-lo, explicá-lo ou perdoá-lo, para que no coração só ficasse a memória do benefício; mas o esforço era vão. O ressentimento, hóspede novo e exclusivo, entrou e pôs  fora  o  benefício,  de  tal modo  que  o  desgraçado  não  teve  mais  que  trepar  à  cabeça  e refugiar-se ali como uma simples ideia. Foi assim que o próprio benfeitor insinuou a este homem o sentimento da ingratidão.
Tudo isso assombrou o Garcia. Este moço possuía, em gérmen, a faculdade de decifrar os homens, de decompor os caracteres, tinha o amor da análise, e sentia o regalo, que dizia ser supremo,  de penetrar muitas  camadas  morais,  até  apalpar  o  segredo  de  um  organismo.
Picado de curiosidade, lembrou-se de ir ter com o homem de Catumbi, mas advertiu que nem recebera  dele  o  oferecimento  formal  da  casa.  Quando  menos,  era-lhe  preciso  um pretexto, e não achou nenhum.
Tempos  depois,  estando  já  formado,  e  morando  na  rua  de  Matacavalos,  perto  da  do Conde, encontrou  Fortunato  em  uma  gôndola,  encontrou-o  ainda  outras  vezes,  e  a frequência trouxe a familiaridade. Um dia Fortunato convidou-o a ir visitá-lo ali perto, em Catumbi.
— Sabe que estou casado?
— Não sabia.
— Casei-me há quatro meses, podia dizer quatro dias. Vá jantar conosco domingo.
— Domingo?
— Não esteja forjando desculpas; não admito desculpas. Vá domingo.
Garcia foi lá domingo. Fortunato deu-lhe um bom jantar, bons charutos e boa palestra, em companhia da  senhora,  que  era  interessante.  A  figura  dele  não  mudara;  os  olhos  eram  as mesmas  chapas de  estanho,  duras  e  frias;  as  outras  feições  não  eram  mais  atraentes  quedantes. Os obséquios, porém, se não resgatavam a natureza, davam alguma compensação, e não  era  pouco.  Maria  Luísa é que  possuía  ambos  os  feitiços,  pessoa  e  modos.  Era  esbelta, airosa, olhos meigos e submissos; tinha vinte e cinco anos e parecia não passar de dezenove.
Garcia,  à  segunda  vez  que  lá  foi,  percebeu  que  entre  eles  havia  alguma  dissonância  de caracteres, pouca ou nenhuma afinidade moral, e da parte da mulher para com o marido uns modos que  transcendiam  o  respeito  e  confinavam  na  resignação  e  no  temor.  Um  dia, estando os três juntos, perguntou Garcia a Maria Luísa se tivera notícia das circunstâncias em que ele conhecera o marido.
— Não, respondeu a moça.
— Vai ouvir uma ação bonita.
— Não vale a pena, interrompeu Fortunato.
— A senhora vai ver se vale a pena, insistiu o médico.
Contou o caso da rua de D. Manuel. A moça ouviu-o espantada. Insensivelmente estendeu a mão e apertou o pulso ao marido, risonha e agradecida, como se acabasse de descobrir-lhe o coração. Fortunato sacudia os ombros, mas não ouvia com indiferença. No fim contou ele próprio a visita que o ferido lhe fez, com todos os pormenores da figura, dos gestos, das palavras atadas, dos silêncios, em suma, um estúrdio. E ria muito ao contá-la. Não era o riso da dobrez. A dobrez é evasiva e oblíqua; o riso dele era jovial e franco.
— Singular homem! pensou Garcia.
Maria Luísa ficou desconsolada com a zombaria do marido; mas o médico restituiu-lhe a satisfação anterior,  voltando  a  referir  a  dedicação  deste  e  as  suas  raras  qualidades  de enfermeiro; tão bom enfermeiro, concluiu ele, que, se algum dia fundar uma casa de saúde, irei convidá-lo.
— Valeu? perguntou Fortunato.
— Valeu o quê?
— Vamos fundar uma casa de saúde?
— Não valeu nada; estou brincando.
— Podia-se fazer alguma coisa; e para o senhor, que começa a clínica, acho que seria bem bom. Tenho justamente uma casa que vai vagar, e serve.
Garcia recusou nesse e no dia seguinte; mas a ideia tinha-se metido na cabeça ao outro, e não foi possível recuar mais. Na verdade, era uma boa estreia para ele, e podia vir a ser um bom  negócio para  ambos.  Aceitou  finalmente,  daí  a  dias,  e  foi  uma  desilusão  para  Maria Luísa. Criatura nervosa e frágil, padecia só com a ideia de que o marido tivesse de viver em contato com enfermidades humanas, mas não ousou opor-se-lhe, e curvou a cabeça. O plano fez-se e cumpriu-se depressa. Verdade é que Fortunato não curou de mais nada, nem então, nem  depois.  Aberta  a  casa, foi  ele  o  próprio  administrador  e  chefe  de  enfermeiros,examinava tudo, ordenava tudo, compras e caldos, drogas e contas.
Garcia pôde então observar que a dedicação ao ferido da rua de D. Manuel não era um caso fortuito, mas assentava na própria natureza deste homem. Via-o servir como nenhum dos  fâmulos.  Não recuava  diante  de  nada,  não  conhecia  moléstia  aflitiva  ou  repelente,  e estava sempre pronto para tudo, a qualquer hora do dia ou da noite. Toda a gente pasmava e aplaudia.  Fortunato  estudava, acompanhava  as  operações,  e  nenhum  outro  curava  os cáusticos. — Tenho muita fé nos cáusticos, dizia ele.
A comunhão dos interesses apertou os laços da intimidade. Garcia tornou-se familiar na casa;  ali jantava  quase  todos  os  dias,  ali  observava  a  pessoa  e  a  vida  de  Maria  Luísa,  cuja solidão moral era evidente. E a solidão como que lhe duplicava o encanto. Garcia começou a sentir  que alguma  coisa  o  agitava,  quando  ela  aparecia,  quando  falava,  quando  trabalhava, calada, ao canto da janela, ou tocava ao piano umas músicas tristes. Manso e manso, entrou- lhe o amor no coração. Quando deu por ele, quis expeli-lo, para que entre ele e Fortunato não houvesse outro laço que o da amizade; mas não pôde. Pôde apenas trancá-lo; Maria Luísa compreendeu ambas as coisas, a afeição e o silêncio, mas não se deu por achada.
No  começo  de  outubro  deu-se  um  incidente  que  desvendou  ainda  mais  aos  olhos  do médico a situação da moça. Fortunato metera-se a estudar anatomia e fisiologia, e ocupava-se nas  horas  vagas em  rasgar  e  envenenar  gatos  e  cães.  Como  os  guinchos  dos  animais atordoavam os doentes, mudou o laboratório para casa, e a mulher, compleição nervosa, teve de  os  sofrer.  Um  dia,  porém, não  podendo  mais,  foi  ter  com  o  médico  e  pediu-lhe  que, como coisa sua, alcançasse do marido a cessação de tais experiências.
— Mas a senhora mesma...
Maria Luísa acudiu, sorrindo:
— Ele naturalmente achará que sou criança. O que eu queria é que o senhor, como médico, lhe dissesse que isso me faz mal; e creia que faz...
Garcia alcançou prontamente que o outro acabasse com tais estudos. Se os foi fazer em outra  parte, ninguém  o  soube,  mas  pode  ser  que  sim.  Maria  Luísa  agradeceu  ao  médico, tanto por ela como pelos animais, que não podia ver padecer. Tossia de quando em quando; Garcia perguntou-lhe se tinha alguma coisa, ela respondeu que nada.
— Deixe ver o pulso.
— Não tenho nada.
Não deu o pulso, e retirou-se. Garcia ficou apreensivo. Cuidava, ao contrário, que ela podia ter alguma coisa, que era preciso observá-la e avisar o marido em tempo.
Dois dias depois, — exatamente o dia em que os vemos agora, — Garcia foi lá jantar. Na sala disseram-lhe que Fortunato estava no gabinete, e ele caminhou para ali; ia chegando à porta, no momento em que Maria Luísa saía aflita.— Que é? perguntou-lhe.
— O rato! o rato! exclamou a moça sufocada e afastando-se.
Garcia lembrou-se que, na véspera, ouvira ao Fortunato queixar-se de um rato, que lhe levara um apel importante; mas estava longe de esperar o que viu. Viu Fortunato sentado à mesa,  que  havia no centro  do  gabinete,  e  sobre  a  qual  pusera  um  prato  com  espírito  de vinho.  O  líquido flamejava.  Entre  o  polegar  e  o  índice  da  mão  esquerda  segurava  um barbante, de cuja ponta pendia o rato atado pela cauda. Na direita tinha uma tesoura. No momento em que o Garcia entrou, Fortunato cortava ao rato uma das patas; em seguida desceu o infeliz até à chama, rápido, para não matá-lo, e dispôs-se a fazer o mesmo à terceira, pois já lhe havia cortado a primeira. Garcia estacou horrorizado.
— Mate-o logo! disse-lhe.
— Já vai.
E  com  um  sorriso  único,  reflexo  de  alma  satisfeita,  alguma  coisa  que  traduzia  a  delícia íntima das sensações supremas, Fortunato cortou a terceira pata ao rato, e fez pela terceira vez o mesmo movimento até a chama. O miserável estorcia-se, guinchando, ensanguentado, chamuscado, e não acabava de morrer. Garcia desviou os olhos, depois voltou-os novamente, e estendeu a mão para impedir que o suplício continuasse, mas não chegou a fazê-lo, porque o  diabo  do  homem  impunha medo,  com  toda  aquela  serenidade  radiosa  da  fisionomia. Faltava  cortar  a  última  pata; Fortunato  cortou-a  muito  devagar,  acompanhando  a  tesoura com os olhos; a pata caiu, e ele ficou olhando para o rato meio cadáver. Ao descê-lo pela quarta  vez,  até  a  chama,  deu  ainda  mais rapidez  ao  gesto,  para  salvar,  se  pudesse,  alguns farrapos de vida.
Garcia,  defronte,  conseguia  dominar  a  repugnância  do  espetáculo  para  fixar  a  cara  do homem. Nem raiva, nem ódio; tão somente um vasto prazer, quieto e profundo, como daria a outro a audição e uma bela sonata ou a vista de uma estátua divina, alguma coisa parecida com  a  pura  sensação estética.  Pareceu-lhe,  e  era  verdade,  que  Fortunato  havia-o inteiramente esquecido. Isto posto, não estaria fingindo, e devia ser aquilo mesmo. A chama ia  morrendo,  o  rato  podia  ser  que tivesse ainda  um  resíduo  de  vida,  sombra  de  sombra; Fortunato aproveitou-o para cortar-lhe o focinho e pela última vez chegar a carne ao fogo.
Afinal  deixou  cair  o  cadáver  no  prato,  e  arredou  de  si  toda  essa  mistura  de  chamusco  e sangue.
Ao levantar-se deu com o médico e teve um sobressalto. Então, mostrou-se enraivecido contra o animal, que lhe comera o papel; mas a cólera evidentemente era fingida.
— Castiga sem raiva, pensou o médico, pela necessidade de achar uma sensação de prazer, que só a dor alheia lhe pode dar: é o segredo deste homem.
Fortunato encareceu a importância do papel, a perda que lhe trazia, perda de tempo, é certo, mas o tempo agora era-lhe preciosíssimo. Garcia ouvia só, sem dizer nada, nem lhe dar crédito. Relembrava os atos dele, graves e leves, achava a mesma explicação para todos. Era a mesma  troca  das  teclas da sensibilidade,  um  diletantismo  sui  generis,  uma  redução  de Calígula.
Quando  Maria  Luísa  voltou  ao  gabinete,  daí  a  pouco,  o  marido  foi  ter  com  ela,  rindo, pegou-lhe nas mãos e falou-lhe mansamente:
— Fracalhona!
E voltando-se para o médico:
— Há de crer que quase desmaiou?
Maria Luísa defendeu-se a medo, disse que era nervosa e mulher; depois foi sentar-se à janela com as suas lãs e agulhas, e os dedos ainda trêmulos, tal qual a vimos no começo desta história. Hão de lembrar-se que, depois de terem falado de outras coisas, ficaram calados os três, o marido sentado e olhando para o teto, o médico estalando as unhas. Pouco depois foram jantar; mas o jantar não foi alegre. Maria Luísa cismava e tossia; o médico indagava de si mesmo se ela não estaria exposta a algum excesso na companhia de tal homem. Era apenas possível; mas o amor trocou-lhe a possibilidade em certeza; tremeu por ela e cuidou de os vigiar.
Ela tossia, tossia, e não se passou muito tempo que a moléstia não tirasse a máscara. Era a tísica, velha  dama  insaciável,  que  chupa  a  vida  toda,  até  deixar  um  bagaço  de  ossos.
Fortunato recebeu a notícia como um golpe; amava deveras a mulher, a seu modo, estava acostumado com ela, custava-lhe perdê-la. Não poupou esforços, médicos, remédios, ares, todos os recursos e todos os paliativos. Mas foi tudo vão. A doença era mortal. Nos  últimos  dias,  em  presença  dos tormentos  supremos  da  moça,  a  índole  do  marido subjugou  qualquer  outra  afeição.  Não  a deixou  mais;  fitou  o  olho  baço  e  frio  naquela decomposição lenta e dolorosa da vida, bebeu uma a uma as aflições da bela criatura, agora magra e transparente, devorada de febre e minada de morte. Egoísmo aspérrimo, faminto de sensações, não lhe perdoou um só minuto de agonia, nem lhos pagou com uma só lágrima, pública ou íntima. Só quando ela expirou, é que ele ficou aturdido. Voltando a si, viu que estava outra vez só.
De noite, indo repousar uma parenta de Maria Luísa, que a ajudara a morrer, ficaram na sala Fortunato e Garcia, velando o cadáver, ambos pensativos; mas o próprio marido estava fatigado, o médico disse-lhe que repousasse um pouco. 
— Vá descansar, passe pelo sono uma hora ou duas: eu irei depois.
Fortunato saiu, foi deitar-se no sofá da saleta contígua, e adormeceu logo. Vinte minutos depois acordou,  quis  dormir  outra  vez,  cochilou  alguns  minutos,  até  que  se  levantou  e voltou à sala. Caminhava nas pontas dos pés para não acordar a parenta, que dormia perto. Chegando à porta, estacou assombrado.
Garcia tinha-se chegado ao cadáver, levantara o lenço e contemplara por alguns instantes as feições defuntas. Depois, como se a morte espiritualizasse tudo, inclinou-se e beijou-o na testa. Foi nesse momento que Fortunato chegou à porta. Estacou assombrado; não podia ser o beijo da amizade, podia ser o epílogo de um livro adúltero. Não tinha ciúmes, note-se; a natureza compô-lo de maneira que lhe não deu ciúmes nem inveja, mas dera-lhe vaidade, que não é menos cativa ao ressentimento. Olhou assombrado, mordendo os beiços. Entretanto, Garcia inclinou-se ainda para beijar outra vez o cadáver; mas então não pôde mais. O beijo rebentou em soluços, e os olhos não puderam conter as lágrimas, que vieram em borbotões, lágrimas de amor calado, e irremediável desespero. Fortunato, à porta, onde ficara,  saboreou  tranquilo  essa  explosão  de  dor  moral  que  foi  longa,  muito  longa,
deliciosamente longa.

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