quinta-feira, 25 de agosto de 2016

A mão do macaco - William Wymark Jacobs

Resultado de imagem para a mão do macacoLá fora, a noite era fria e húmida, mas, na pequena sala de estar da Vila Lakesnam, as gelosias estavam cerradas e o fogo brilhava alegremente. Pai e filho estavam jogando xadrez, e o primeiro, que possuía ideias sobre o jogo, envolvendo uma mudança radical de táctica, punha o rei em tão desesperados e desnecessários perigos que provocou comentários até da velha senhora de cabelos brancos, que estava fazendo, placidamente, croché perto do fogo. 
– Escuta esse vento! – disse o Senhor White, que, tendo notado um erro fatal quando já era tarde 
demais, desejava evitar, com habilidade, que o filho o notasse também. 
– Estou escutando – disse o outro, observando atentamente o tabuleiro, ao mesmo tempo que 
estendia a mão. – Xeque! 
– Estava achando muito difícil que ele viesse esta noite – disse o pai, com a mão erguida sobre o 
tabuleiro. 
– Mate! – prosseguiu o filho. 
– Isso é o que tem de pior, viver assim tão afastado! – vociferou o Senhor White, com súbita e 
inesperada violência; – De todos os lugares idiotas, lamacentos e fora de mão para se morar, este é o pior. O caminho é um atoleiro e, a estrada, um rio. Não sei o que essa gente pensa. Acho que, porque somente duas casas da estrada estão alugadas, entendem que não tem importância. 
– Não te importes, querido – disse-lhe a esposa, conciliadoramente; – talvez ganhes a próxima partida. 
O Senhor White ergueu bruscamente a vista, mesmo em tempo de interceptar um olhar de compreensão, trocado entre mãe e filho. As palavras morreram-lhe nos lábios, e escondeu um sorriso contrafeito, na barba rala, grisalha. 
– Aí está ele! – exclamou Herbert White, ao ouvir o portão bater com estrondo e pesados passos, que vinham em direção à porta. 
O velho levantou-se com solicitude hospitaleira, e, enquanto abria a porta, puderam ouvi-lo lastimando-se do tempo, com o recém-chegado.  Este também se lastimou,  de maneira que a Senhora White disse: "Chut! Chut!" e tossiu de leve, quando o marido entrou no aposento, seguido por um homem alto e corpulento, de olhos salientes e faces rubicundas. 
– Sargento-major Morris – disse, apresentando-o. 
O major trocou apertos de mão, e, tomando a cadeira oferecida junto ao fogo, observou, com satisfação, que o anfitrião trazia uísque e copos e punha uma pequena chaleira de cobre no fogo. Ao terceiro copo, seus olhos ficaram mais brilhantes e começou a falar, enquanto o pequeno círculo da família olhava, com agudo interesse, aquele visitante de terras longínquas, que encostava os ombros robustos no espaldar da cadeira, falando de cenas estranhas e feitos denodados, de guerras e pestes e de povos exóticos. 
– Vinte e um anos disto – disse o Senhor White, acenando, com a cabeça, para a esposa e o filho. 
– Quando partiu, era um belo moço, no armazém. Agora, olhem para ele. 
– Não parece ter-se dado muito mal – observou a Senhora White delicadamente. 
– Eu gostaria de ir à Índia, também, – disse o velho cavalheiro – só para ver como aquilo é, sabem? 
– Foi melhor ficar por aqui mesmo – retrucou o major, abanando a cabeça. Pousou o copo vazio e, suspirando de leve, sacudiu-a outra vez. 
– Gostaria de ver aqueles velhos templos, e faquires, e pelotiqueiros – insistiu o velho. – O que era que ia começar a contar-me no outro dia, a respeito de uma mão de macaco, ou coisa que o valha, Morris? 
– Nada – respondeu o soldado, muito depressa. – ¬Pelo menos, nada que valha a pena ouvir-se. 
– Mão de macaco? – indagou a Senhora White, com curiosidade. 
– Bem, apenas o que se poderia chamar magia, talvez – respondeu o major, de maneira vaga. Seus três ouvintes curvaram-se para a frente, interessados. O visitante, alheadamente, levou o copo vazio aos lábios e depois tornou a pousá-lo. O anfitrião encheu-lho de novo. 
– À simples vista – disse o major, remexendo no bolso – é apenas uma pequena mão comum, seca e mumificada. 
Tirou qualquer coisa do bolso e exibiu-a. A senhora White recuou, com uma careta, mas o filho, pegando no objecto, examinou-o com curiosidade. 
– E que é que há de especial nela? – perguntou o Senhor White, tomando-a das mãos do filho e pousando-a sobre a mesa, depois de examiná-la. 
– Possui um encantamento, que lhe foi posto por um velho faquir – explicou o major – um homem muito velho. Queria mostrar que o destino segue a vida dos homens e que aqueles que interferem com ele o fazem para seu próprio mal. Pôs-lhe um encantamento, para que três homens distintos pudessem satisfazer, cada um, três desejos. 
Suas maneiras eram tão impressionantes que os ouvintes tinham a consciência de que os seus risos alegres soavam um pouco falsos. 
–   Bem,   e   por   que   não   formula   três   desejos,   senhor?   –   perguntou   Herbert   White, inteligentemente. 
O soldado olhou-o da maneira que um homem de meia-idade olha para a mocidade presunçosa. 
– Já formulei... – disse, devagar, e o seu rosto corado empalideceu. 
– E obteve, realmente, que esses três desejos se realizassem? – perguntou o Senhor White. 
– Obtive – respondeu o major, e o copo tilintou de encontro aos seus dentes brancos. – E alguém mais já desejou? 
– O primeiro homem também satisfez seus três desejos, sim… – foi a resposta. – Não sei quais foram os dois primeiros, mas o terceiro foi a morte. Foi assim que obtive a mão. 
O seu tom era tão grave que um silêncio caiu sobre o grupo. 
– Se já obteve os seus três desejos, não lhe serve para mais nada; então, Morris, – disse o velho, por fim. – Para que a conserva? 
O soldado abanou a cabeça. 
– Fantasia, suponho – disse, devagar. – Tive uma vaga ideia de vendê-la, mas não creio que o faça. Já causou infortúnios demais. Além disso, ninguém a compraria. Alguns acham que é uma história fantástica, e os que acreditam alguma coisa dela, querem experimentar primeiro e pagar-me depois. 
– Se pudesse formular outros três desejos, – perguntou o velho, fitando-o atentamente – fá-lo-ia? 
– Não sei, – respondeu o outro – não sei... 
Pegou na mão, e, balançando-a entre o indicador e o polegar, jogou-a de súbito no fogo. White, com um pequeno grito, curvou-se e tirou-a. 
– É melhor que a deixe queimar-se – sentenciou o soldado, solenemente. 
– Se não a quer, Morris, – pediu o velho – dê-ma. 
– Não farei isso – respondeu o amigo, com rabugice. – Atirei-a ao fogo. Se a quiser guardar, não me censure pelo que possa acontecer. Jogue-a no fogo de novo, como um homem de juízo. O outro abanou a cabeça e examinou atentamente sua nova aquisição. 
– Como se faz? – perguntou. 
– Segura-se levantada, com a mão direita, e faz-se o pedido em voz alta – disse o major – mas, previno-o... contra as consequências. 
– Parece coisa das "Mil e uma noites"! – exclamou a Senhora White, enquanto se levantava e começava a preparar tudo para a ceia. – Não achas que poderias desejar quatro mãos para mim? 
O marido tirou o talismã do bolso e, então, os três desataram a rir, enquanto o major, com um ar de susto no rosto, o segurava pelo braço. 
– Se quer formular um pedido, – disse-lhe, severamente – faça-o de maneira inteligente. 
O Senhor White deixou cair de novo o talismã no bolso, e, chegando as cadeiras, conduziu o amigo à mesa. Com o entretenimento da ceia, o objecto foi em parte esquecido, e, depois, os três ficaram sentados, escutando, atentos, uma segunda série das aventuras do soldado da Índia. 

* * *

– Se a história a respeito da mão do macaco não for mais verdadeira do que as outras que ele nos esteve contando – disse Herbert, quando a porta se fechou às costas do hóspede, apenas em tempo para este apanhar o último comboio – não conseguiremos grande coisa com ela. – Deste-lhe alguma coisa por ela, meu velho? – ¬perguntou a Senhora White, olhando para o marido, com atenção. 
– Uma bagatela – respondeu ele, corando de leve. – Não queria aceitar, mas obriguei-o. E insistiu de novo comigo para que a jogasse fora. 
– Não faça isso! – exclamou Herbert, com pretenso horror. – Ora essa! Vamos ficar ricos, famosos e felizes. Deseje ser inperador, papai, para começar; depois, não poderá ser dominado pela esposa. 
Correu em volta da mesa, perseguido pela indignada Senhora White, armada de uma vassoura. O Senhor White tirou a mão de macaco do bolso e olhou para ela, indeciso. 
– Não sei o que hei de desejar, esta é a verdade... – disse, lentamente. – Parece-me que tenho tudo o que quero. 
– Se liquidasse a hipoteca da casa, seria completamente feliz, não é verdade? – sugeriu Herbert, pousando -lhe a mão no ombro. –Pois bem, deseje duzentas libras, então; é justamente o que falta. 
O pai, sorrindo, meio envergonhado da própria credu¬lidade, ergueu o talismã, enquanto o filho, com ar solene, que um piscar de olhos à mãe desmentia, sentava-se ao piano e fazia soar alguns acordes majestosos. 
– Desejo ter duzentas libras – pediu o velho, em voz alta. 
Uma bela ressonância do piano saudou aquelas palavras, interrompida por um grito assustado do velho. O filho e a esposa correram para ele. 
– Mexeu-se!... – exclamou ele, com um olhar de receio para o objecto que jazia no chão. – Quando formulei o desejo, contraiu-se-me na mão qual uma cobra. 
– Bem, não vejo o dinheiro... e aposto que nunca o verei – atalhou o moço. 
– Deve ter sido impressão tua, meu velho – disse a esposa, olhando para ele com ansiedade.O marido abanou a cabeça. 
– Não importa, porém. Não aconteceu nada de mau, mas levei um choque, assim mesmo. Sentaram-se novamente, junto ao fogo, enquanto os dois homens acabavam de fumar os seus cachimbos. Lá fora, o vento estava mais forte do que nunca, e o velho teve um sobressalto nervoso ao som de uma porta batendo no primeiro andar. Um silêncio insólito e deprimente pesou sobre os três, e prolongou-se até que o casal de velhos se levantou para recolher-se. 
– Espero que encontre o dinheiro amarrado em um grande maço, no meio da cama, – gracejou Herbert, ao curvar-se para dizer-lhes boa noite – e qualquer coisa terrível agachada em cima do guarda-roupa, espiando-o, enquanto o senhor se apossa da fortuna mal ganha. 

II

Na manhã seguinte, na claridade do sol de Inverno iluminando a mesa do café, Herbert riu-se do susto dos pais. Havia um ar de saudável banalidade, no aposento, que faltava na noite anterior, e a pequena mão de macaco, suja e enrugada, estava pousada sobre o aparador. Com um pouco caso que não demonstrava grande fé nas suas virtudes. 
– Suponho que todos os soldados são a mesma coisa – disse a Senhora White. – Que ideia, a nossa, de dar ouvidos a tais contra-sensos! Como poderiam realizar-se simples desejos, hoje em dia? E, se pudessem, como haviam de fazer-te mal duzentas libras, meu velho? 
– Podiam cair-lhe do céu na cabeça – chasqueou o frívolo Herbert. 
– Morris contou que as coisas aconteciam tão naturalmente – disse o pai – que se poderia, querendo, atribuí-las a mera coincidência. 
– Bem, não vá gastar o dinheiro todo antes que eu esteja de volta – recomendou Herbert, levantando-se da mesa. – Receio que se transforme num mesquinho avarento e que tenhamos de desconhecê-lo. 
A mãe riu-se, e, acompanhando-o até a porta. Observou-o enquanto seguia pela estrada abaixo, e depois, voltando à mesa do café, divertiu-se muito às custas da credulidade do marido. O que não a impediu de precipitar-se para a porta, quando o carteiro bateu, e nem tampouco de resmungar qualquer coisa sobre majores reformados, de hábitos biliosos, quando verificou que o correio lhe trazia apenas uma conta do alfaiate. 
– Herbert vai dizer mais algumas pilhérias, espero, quando voltar – disse ela, quando se sentavam para jantar. 
– Imagino que sim, – concordou o Senhor White, servindo-se de cerveja; – mas, seja como for, aquela coisa mexeu-se na minha mão; isso eu posso jurar. 
– Pensaste que se moveu – observou a velha senhora, meigamente. 
– Digo-te que se mexeu! – replicou o outro. – Não resta a menor dúvida. Eu tinha... que foi? 
A esposa não respondeu. Estava a observar os misteriosos movimentos de um homem, lá fora, que, espreitando de maneira indecisa para a casa, parecia estar tentando resolver-se a entrar. Em conexão mental com as duzentas libras, notou que o estranho estava bem vestido e usava uma cartola de seda, brilhante e nova. Três vezes parou ao portão, mas, depois, afastou-se de novo. Da quarta vez, parou com a mão pousada nele, e, com súbita resolução, abriu-o e caminhou em direção à casa. A Senhora White, no mesmo instante, levou as mãos às costas e, desatando apressadamente os cordões do avental, colocou aquela útil peça de roupa sob a almofada da sua cadeira. 
Trouxe   o   estranho,   que   parecia   pouco   à   vontade,   para   dentro   do   aposento.   Ele   olhava 
furtivamente para a Senhora White, e escutava, com ar preocupado, enquanto a velha senhora pedia 
desculpas pela aparência da sala, e pelo sobretudo do marido, um agasalho que, geralmente, ele reservava para o jardim. Ela esperou, tão pacientemente quanto o seu sexo o permitia, que o homem 
desembuchasse o que tinha para dizer, mas, a princípio, ele conservou-se num silêncio embaraçado.
 – Pediram-me... para vir aqui – disse, por fim, e curvou-se para tirar um fiapo de algodão das calças. – Venho de parte de Naw & Naggins. 
A velha senhora sobressaltou-se. 
– Que foi? – perguntou, com a respiração alterada. – Aconteceu alguma coisa a Herbert? Que é? Que é? 
O marido interpôs-se. 
– Vamos, vamos, minha velha – disse, apressadamente. – Senta-te, e não tires conclusões antecipadas. Não é portador de más notícias, estou certo, senhor – e observava o outro atentamente. 
– Sinto muito... – começou o visitante. 
– Está ferido? – perguntou a mãe. 
O visitante curvou-se, confirmando. 
– Gravemente ferido, mas já não sofre coisa alguma. 
– Oh, graças a Deus! – exclamou a velha senhora, juntando as mãos. – Graças a Deus, por isso. Graças ... 
Interrompeu-se de súbito, ao perceber o sinistro significado da afirmativa do outro e viu a terrível confirmação dos seus receios na cara compungida que ele fez. Suspendeu a respiração, e voltando-se para o marido, menos vivo em compreender do que ela, pousou a mão trémula na dele. Houve um longo silêncio. 
– Foi colhido por uma máquina – disse o visitante por fim, em voz baixa. 
– Colhido por uma máquina... – repetiu o Senhor White, de maneira vaga. – Sim ... 
Ficou sentado, olhando confusamente pela janela; e, tomando a mão da esposa entre as suas, apertou-a como costumava fazer nos velhos tempos em que se namoravam, quase quarenta anos atrás. 
– Era o único que nos restava – disse, voltando-se gentilmente para o visitante. – É duro.O Outro tossiu, e, levantando-se, caminhou lentamente até à janela. 
– A firma encarregou-me de transmitir-lhes a sua sincera simpatia pela grande perda que sofreram   – disse,   sem   voltar   a   olhar.   –   Peço-lhes   para   compreenderem   que   sou   apenas   um empregado e que estou a obedecer a ordens recebidas. 
Não houve resposta; a face da anciã estava branca, os olhos vítreos, a respiração mal audível; no rosto do marido, havia uma expressão que devia ser semelhante à do seu amigo major ao entrar pela primeira vez em acção. 
– Devo dizer-lhes que Naw & Naggins negam qualquer responsabilidade – continuou o outro. – Não admitem qualquer obrigação, mas, em consideração aos serviços prestados por seu filho, desejam oferecer-lhes certa importância em dinheiro, a título de compensação. 
O Senhor White deixou cair a mão da esposa, e, pondo-se em pé, fitou o visitante com um olhar horrorizado. Seus lábios secos balbuciaram a palavra: 
– Quanto? 
– Duzentas libras – foi a resposta. 
Inconsciente do grito da esposa, o ancião sorriu debilmente, estendeu as mãos feito um homem cego, e caiu, qual um farrapo, inerte, no assoalho. 

III

No vasto cemitério novo, a umas duas milhas de distância, os anciãos enterraram o morto querido voltaram   para   a  casa,   agora   imersa   em   sombras   e   silêncio.  Acontecera   tudo   tão rapidamente   que,   a   princípio,   mal   podiam   compreendê-lo,   e   tinham   ficado   num   estado de expectativa, como se alguma coisa mais devesse acontecer alguma coisa que aliviasse aquela carga demasiado pesada para os seus velhos corações suportarem. Mas os dias passaram-se, e a cruel expectativa   cedeu   lugar   à  resignação   –   a   resignação   irremediável  dos   velhos,   às   vezes erroneamente chamada apatia. Às vezes, mal trocavam uma palavra, porque agora não tinham sobre que falar, e os seus dias eram longos e enfadonhos. 
Foi cerca de uma semana depois daquilo que o ancião, acordando de súbito, uma noite, estendeu a mão e verificou que se achava sozinho na cama. O quarto estava em trevas e vinha da janela um som de soluços abafados. Sentou-se na cama e escutou. 
Vem… – disse, ternamente. – Vais apanhar frio. Mais frio estará sentindo o meu filho – respondeu a anciã, e soluçou mais alto. 
O som dos soluços morreu nos ouvidos dele. A cama estava quente e os seus olhos pesados de sono. Dormitou um pouco, agitado, e depois adormeceu, até que um súbito grito selvagem da esposa o acordou em sobressalto. 
– A mão do macaco! – gritava ela, selvagemente. A mão do macaco! 
Ele despertou, alarmado. 
– Onde? Onde está? Que foi que aconteceu? 
Ela veio cambaleando pelo quarto, em direcção a ele. 
– Quero-a – disse, calmamente. – Tu não a destruíste? 
– Está na sala, na prateleira – respondeu ele, muito admirado. – Porquê? 
Ela chorava e ria-se ao mesmo tempo e, curvando-se, beijou-o na face. 
– Só agora me lembrei disso – disse, histericamente. – Por que não me lembrei antes? Por que não te lembraste tu? 
– Lembrar de quê? 
– Dos outros dois desejos – respondeu ela, rapidamente. – Só formulamos um. 
– E não foi bastante? – perguntou ele, com violência. 
– Não! – exclamou ela, triunfalmente. – Formularemos mais um. Vai lá em baixo, traze-a depressa, e manifesta o desejo que teu filho esteja vivo de novo. 
o homem sentou-se na cama e afastou as cobertas de sobre os membros trémulos. 
– Santo Deus, estás louca! 
– Vai buscá-la, – insistiu ela. – Vai buscá-la e pede. Oh, meu filho, meu filho! 
O marido riscou um fósforo e acendeu a vela. 
– Volta para a cama – disse, irresolutamente. – ¬Não sabes o que estás a dizer. 
– Obtivemos a realização do primeiro desejo, – disse a anciã, com fervor; – por que não 
havemos de obter o segundo? 
– Uma coincidência... – gaguejou o ancião. 
– Vai buscá-la e pede! – gritou a anciã, arrastando-o para a porta. 
Ele desceu, no escuro, tacteou o caminho para a sala e depois para o aparador. O talismã estava no seu lugar, e um horrível medo de que o desejo não formulado trouxesse o filho mutilado à sua presença,   antes   que   ele   pudesse   fugir   do   aposento,   apoderou-se   do   seu   espírito.  Susteve a respiração, quando viu que perdera a direcção da porta. Com a testa húmida de suor, encontrou o caminho em volta da mesa, e foi-se arrastando, ao longo da parede, no estreito corredor, com aquela
coisa nojenta na mão. 
Até   o   rosto   da   esposa   pareceu-lhe   mudado,   quando   entrou   no   quarto.   Estava   branco  e 
expectante, e, para seu receio, parecia ter um ar sobrenatural. Teve medo dela. 
– Pede! – gritou ela, em voz forte. 
– É uma tolice inútil – esquivou-se ele. 
– Pede! – repetiu a esposa. 
E ergueu a mão. 
– Quero o meu filho vivo de novo. 
O talismã caiu no assoalho e o velho fitou-o, estremecendo. Depois, deixou cair-se, tremendo, numa cadeira, enquanto a esposa, com os olhos ardendo, se dirigia à janela e levantava a gelosia. Ficou sentado até sentir-se enregelado de frio, olhando de vez em quando para a figura da anciã, espreitando para fora pela janela. O coto da vela, que ardera até abaixo do anel do castiçal de porcelana, lançava sombras oscilantes sobre o teto e as paredes, até que, com uma palpitação mais forte do que as outras, extinguiu-se. O ancião, com indizível sensação de alívio pelo fracasso do talismã, voltou à cama, e, um minuto ou dois após, a anciã veio, silenciosa e apática, para junto dele, 
Nenhum dos dois falou e ambos ficaram deitados silenciosamente, escutando o tique-taque do relógio, Um degrau da escada estalou e um camundongo assustado correu ruidosamente por dentro da parede. A escuridão era opressiva; depois de ficar algum tempo deitado, reunindo coragem, o marido pegou na caixa de fósforos e, riscando um, desceu as escadas para buscar uma vela. No último degrau, o fósforo apagou-se, e ele parou para acender outro, mas, naquele momento, uma batida tão leve e furtiva que mal era audível, soou na porta da rua. 
Os fósforos caíram-lhe das mãos. Ficou imóvel, com a respiração suspensa, até que a batida se repetiu. Então, voltou-se e correu velozmente até o quarto, fechando a porta atrás de si. Uma terceira batida ressoou pela casa. 
– Que foi isto? – exclamou a anciã, sobressaltando-se. 
– Um rato – disse o ancião, em voz trémula. – Um rato. Passou por mim, nas escadas. A esposa sentou-se na cama, escutando. Uma batida forte ressoou pela casa. 
– É Herbert! – gritou ela. – É Herbert! 
Correu para a porta, mas o marido colocou-se diante dela e, agarrando-a pelo braço, segurou-a com força. 
– Que vais fazer? – sussurrou, asperamente. 
– É o meu filho, é Herbert! – gritou ela, lutando mecanicamente. – Tinha-me esquecido de que eram duas milhas de caminho. Por que me seguras? Solta-me! Tenho de abrir a porta. 
– Pelo amor de Deus, não o deixes entrar! – disse o ancião, tremendo. 
– Tens medo do teu próprio filho! – exclamou ela, debatendo-se. – Deixa-me ir! Já vou. Herbert, já vou! 
Houve outra batida, e mais outra, A anciã, num súbito arranco, libertou-se a saiu a correr do quarto. O marido seguiu-a até ao patamar e chamou-a insistentemente, enquanto ela corria escadas abaixo. Ouvira a corrente de segurança ser retirada e a lingueta da chave abrir-se, rangendo. Depois, a voz da anciã, áspera e palpitante. 
– O ferrolho! – gritou, alto. – Desce, não consigo chegar-lhe! 
Mas o marido estava de gatas, arrastando-se ferozmente pelo chão, à procura da mão do macaco. Se  pudesse   ao   menos   encontrá-la,   antes   que   aquela   horrível   coisa   lá   de  fora   entrasse!   Uma verdadeira saraivada de batidas repercutiu pela casa, e ele ouviu o arrastar de uma cadeira, que a esposa estava a colocar junto da porta. Ouviu, ainda, o ruído do ferrolho ao ser aberto lentamente; no mesmo instante, achou a mão do macaco, e, freneticamente, bradou seu terceiro e último desejo. 
As batidas pararam de súbito, embora o seu eco inundasse, ainda, a casa. Ouviu a cadeira sendo arrastada para trás e a porta abrir-se. Um vento frio encanou pelo vão das escadas, mas o longo e sonoro lamento de decepção e agonia da esposa deu-lhe coragem para descer até onde ela estava, e abriu a porta por trás dela. O lampião, que piscava em frente, mostrou-lhe a estrada, calma e deserta. 


quinta-feira, 18 de agosto de 2016

O elixir da longa vida - Honoré de Balzac

("L'elixir de longue vie", 1830)


Se a glória de Balzac (1799-1850) se funda na Comédia humana, ou seja, no grande afresco da sociedade francesa de seu tempo, não é menos verdade que as obras fantásticas têm um lugar de relevo em sua produção, especialmente no primeiro período, quando ele era  mais  influenciado  pelo  ocultismo  de  Swedenborg.  O romance  fantástico  A  pele  de onagro (1831) é uma de suas obras-primas. Mas até nos seus romances mais conhecidos como "realistas"  há  uma  forte  dose  de  transfiguração  fantástica,  que é  um  elemento essencial da sua arte.
Quando  Balzac  iniciou  o  projeto  da  Comédia  humana,  a narrativa  fantástica  da juventude  foi  relegada  à  margem  de  sua obra;  assim  o  conto  "O  elixir  da  longa  vida", publicado em revista  em  1830,  foi  republicado  entre  os  Estudos filosóficos, precedido  de uma introdução que o apresentava como um estudo social acerca dos herdeiros impacientes com a morte dos genitores. Acréscimo artificioso, que preferimos ignorar; o texto que aqui apresento é o da primeira versão.
O cientista satânico é um velho tema medieval e renascentista (Fausto, as lendas dos Alquimistas) que o século XIX, primeiro romântico e depois simbolista, saberá explora (basta lembrar o Frankenstein de Mary Shelley, que só não está nesta coletânea por ser muito longo) e que depois será adotado pela ficção científica.
Aqui nos deparamos com uma hipotética Ferrara quinhentista. Um velho riquíssimo busca  um  unguento  oriental  que  faz  ressuscitar  os  mortos.  Balzac  tem  muitas  idéias, talvez idéias demais: a Itália renascentista, pagã e papal, a Espanha beata e penitencial, o desafio  alquimista  às  leis  da  natureza,  a  danação  de  Don  Giovanni  (com  uma  curiosa variante: é ele que se torna o convidado de pedra) e um final espetacular, cheio de pompas eclesiásticas e de sarcasmos blasfemos. Mas o conto se impõe pelos efeitos macabros das partes do corpo que vivem por si: um olho, um braço e até uma cabeça que se destaca do corpo morto e morde o crânio de um vivo, como o conde Ugolino no Inferno.

Num suntuoso palácio de Ferrara, numa noite de inverno, don Juan Belvidero obsequiava um príncipe da Casa d'Este. Nessa época, uma festa era um es-petáculo maravilhoso  que  só  riquezas fabulosas  ou  o  fausto  de  um  nobre  permitiam organizar. Sentadas ao redor de uma mesa iluminada por velas perfumadas, sete alegres  mulheres  trocavam  frases  ligeiras,  entre  obras-primas  admiráveis  cujos mármores brancos se destacavam nas paredes de estuque vermelho e contrastavam com  os  ricos  tapetes  da  Turquia.  Vestidas  de  cetim,  resplandecentes  de  ouro  e cobertas de pedrarias que brilhavam menos que seus olhos, todas elas contavam paixões violentas, mas diferentes, como o eram suas belezas. Não se diferenciavam nem  pelas  palavras  nem  pelas idéias;  mas  o  jeito,  um  olhar,  alguns  gestos  ou  a inflexão  da  voz  serviam  às  suas  palavras  de comentários  libertinos,  lascivos, melancólicos ou satíricos.
Uma  parecia  dizer:  "Minha  beleza  sabe  aquecer  o  gélido  coração  dos  velhos" Outra:  "Gosto de  ficar  deitada  em  cima  de  almofadas  para  pensar  inebriada naqueles que me adoram". Uma terceira, noviça nessas festas, estava quase enrubescendo: "No fundo do coração sinto remorso!", dizia. "Sou católica e tenho medo do inferno. Mas te amo tanto, ah!, tanto e tanto, que posso sacrificar-te a minha eternidade."
A  quarta,  esvaziando  uma  taça  de  vinho  de  Chio,  exclamava:  "Viva  a  alegria! Ganho uma existência nova a cada aurora! Esquecida do passado, ainda tonta pelas investidas  da  véspera,  toda noite  esgoto  uma  vida  de  alegria,  transbordante  de amor!". A  mulher  sentada  perto  de Belvidero  mirava-o  com  olhos  congestionados. 
Estava  calada.  "Eu  não  confiaria  nos  bravi  para  matar  meu  amante,  se  ele  me abandonasse!".  Depois,  riu,  mas  sua  mão  convulsa  quebrou  uma  bomboneira  de ouro miraculosamente talhada.
"Quando serás grão-duque?", perguntou ao príncipe a sexta mulher, com uma expressão de alegria mortífera nos dentes, e um delírio dionisíaco nos olhos.
"E tu, quando morrerá teu pai?", disse a sétima, rindo, jogando seu ramalhete para don Juan num gesto inebriante de travessura.
Era uma inocente donzela acostumada a brincar com todas as coisas sagradas. 'Ah!, nem me fales disso!", exclamou o jovem e belo don J uan Belvidero. "Só há um pai eterno no mundo, e a desgraça quer que seja o meu!"
As sete cortesãs de Ferrara, os amigos de don J uan e o próprio príncipe deram um  grito  de  horror. Duzentos  anos  depois,  no  tempo  de  Luís  XV,  as  pessoas  de bom  gosto  teriam  rido  dessa tirada.  Mas,  também,  será  que  no  começo  de  uma orgia as almas ainda teriam bastante lucidez? Apesar do fogo das velas, do grito das paixões, do aspecto dos vasos de ouro e de prata, do vapor dos vinhos, apesar da contemplação das mulheres mais encantadoras, será que ainda havia, no fundo dos corações, um pouco dessa vergonha diante das coisas humanas e divinas, que se  debate  até  ser afogada  pela  orgia  nas  derradeiras  vagas  de  um  vinho espumante?  No  entanto,  já  as  flores tinham  sido  esmagadas,  os  olhos  se embaçavam, e a embriaguez chegava, de acordo com a expressão de Rabelais, até as sandálias.
Nesse instante de silêncio, abriu-se uma porta; e como no festim de Baltazar, Deus  se  fez  reconhecer;  apareceu  sob  os  traços  de  um  velho  criado  de  cabelos brancos,  andar  trêmulo,  cenho  franzido;  entrou  com  ar  triste,  destruiu  com  um olhar as guirlandas, as taças de vermeil, as pirâmides de frutas, o brilho da festa, a púrpura dos rostos espantados e as cores das almofadas amarfanhadas pelo braço branco das mulheres; por fim, jogou um véu de luto sobre aquela loucura ao dizer em voz cavernosa estas palavras sombrias: "Senhor, vosso pai está à morte". 
Don  Juan  se  levantou  fazendo  para  seus  convidados  um  gesto  que  podia  se traduzir por "Desculpai-me, isso não acontece todo dia".
Não é frequente que a morte de um pai surpreenda os jovens nos esplendores da  vida,  em  meio  às  idéias  loucas  de  uma  orgia? A  morte  é  tão  súbita  em  seus caprichos como uma cortesã em seus desdéns; mais fiel, todavia, jamais enganou alguém.
Quando don J uan fechou a porta da sala e andou por uma galeria comprida, tão fria quanto escura, esforçou-se em assumir uma atitude teatral; ao pensar em seu papel  de  filho,  deixou  de  lado  sua alegria,  assim  como  deixara  de  lado  seu guardanapo. A noite estava negra. O silencioso servidor que conduzia o rapaz até o quarto fúnebre iluminava muito mal o seu senhor, de modo que a morte, ajudada pelo  frio,  o  silêncio,  a  escuridão,  por  uma  reação  de  embriaguez,  pôde  talvez introduzir certas reflexões na alma desse dissipador; ele examinou sua vida e ficou pensativo  como um  homem  que  está  sendo  processado  se  encaminha  para  o tribunal.
Bartolomeo Belvidero, pai de don Juan, era um ancião nonagenário que passara a maior parte da vida nas artimanhas do comércio. Tendo atravessado muitas vezes as talismânicas paragens do Oriente, adquirira imensas riquezas e conhecimentos mais preciosos, dizia, do que o ouro e os diamantes, a que já não dava importância.
"Prefiro  um  dente  a  um  rubi,  e  o  poder  ao  saber",  exclamava  às  vezes,  sorrindo. Esse bom pai gostava de ouvir don Juan lhe contar uma loucura de juventude, e dizia  em  tom  de  troça, oferecendo-lhe  ouro:  "Meu  filho  querido,  faz  apenas  as tolices que te divertirem". Era o único velho que sentia prazer em ver um moço, o amor  paterno  dissimulava  sua  caduquice  pela contemplação  de  uma  vida  tão brilhante.
Aos sessenta anos, Belvidero se apaixonara por um anjo de paz e beleza. Don Juan fora o único fruto desse amor tardio e passageiro. Fazia quinze anos que o pobre  homem  pranteava  a  perda  de  sua querida  Juana.  Seus  inúmeros  criados  e seu  filho  atribuíam  a  essa  dor  de  ancião  os  hábitos singulares  que  ele  contraíra. Refugiado  na  ala  mais  desconfortável  de  seu  palácio,  Bartolomeo de  lá  só  saíamuito raramente, e o próprio don Juan não podia entrar nos aposentos do pai sem permissão.  Se  esse  anacoreta  voluntário  ia  e  vinha  pelo  palácio  ou  pelas  ruas  de Ferrara, parecia  procurar  uma  coisa  que  lhe  faltava;  andava  sonhador,  indeciso, preocupado como um homem que luta contra uma ideia ou uma lembrança.
Enquanto o rapaz dava festas suntuosas e o palácio ressoava com as explosões de  sua  alegria, enquanto  os  cavalos  escoiceavam  nos  pátios,  enquanto  os  pajens brigavam ao jogar dados nos degraus, Bartolomeo comia sete onças de pão por dia e bebia água. Se precisava de um pouco de galinha, era para dar os ossos a um cão de  caça  preto,  seu  fiel  companheiro.  Nunca  se  queixava  do  barulho.  Enquanto esteve doente, se o som da trompa e os latidos dos cães o surpreendiam em seu sono,  contentava-se  em  dizer:  "Ah!  é  don  Juan  que  está  voltando".  Nunca,  nesta terra, se encontrara um pai tão acomodatício e tão indulgente; por isso, o jovem Belvidero, acostumado a tratá-lo sem cerimônia, tinha todos os defeitos dos filhos mimados; vivia com Bartolomeo como uma cortesã caprichosa vive com um velho amante, fazendo desculpar uma impertinência com um sorriso, vendendo seu belo humor, e deixando-se amar.
Ao reconstituir no pensamento o quadro de seus verdes anos, don Juan se deu conta de que lhe seria difícil encontrar uma falha na bondade de seu pai. Ao ouvir o remorso que nascia no fundo de seu coração, no momento em que atravessava a galeria, esteve prestes a perdoar Belvidero por ter vivido tanto tempo. Voltava aos sentimentos  de  piedade  filial,  assim  como  um  ladrão  se  torna  homem  honesto quando pensa no possível desfrute de um milhão, bem roubado.
Logo o rapaz atravessou as salas altas e frias que formavam os aposentos de seu pai. Depois de sentir os efeitos de uma atmosfera úmida, respirar o ar carregado e o  cheiro  rançoso  que  exalavam  as velhas  tapeçarias  e  os  armários  cobertos  de poeira,  encontrou-se  no  antiquado  quarto  do ancião,  diante  de  um  leito nauseabundo,  perto  de  uma  lareira  quase  apagada.  A  lamparina  que estava  em cima de uma mesa de forma gótica jogava no leito, a intervalos desiguais, lâminas de  luz mais  ou  menos  forte,  e  mostrava  assim  a  figura  do  ancião  sob  aspectos sempre diversos. O frio assobiava pelas janelas mal fechadas; e a neve, fustigando as  vidraças,  produzia  um  ruído surdo.  Esse  cenário  formava  um  contraste  tão chocante com a cena que don J uan acabava de deixar que ele não conseguiu evitar um  estremecimento.  Depois  sentiu  frio,  quando,  ao  se aproximar  da  cama,  uma rajada de luz muito violenta, impelida por uma lufada de vento, iluminou a cabeça de seu pai: as feições estavam descompostas, a pele, como que colada fortemente nos ossos, tinha manchas esverdeadas que na brancura do travesseiro sobre o qual o  ancião  repousava  ficavam ainda  mais  horrorosas;  contraída  pela  dor,  a  boca entreaberta  e  sem  dentes  deixava  passar  uns suspiros  cujo  vigor  lúgubre  era acompanhado pelos uivos da tempestade.
Apesar  desses  sinais  de  destruição,  brilhava  sobre  essa  cabeça  uma inacreditável  aparência  de força. Ali,  um  espírito  superior  combatia  a  morte.  Os olhos,  encovados  pela  doença, mantinham  uma  fixidez  singular.  Parecia  que Bartolomeo tentava matar, com seu olhar de agonizante, um inimigo sentado ao pé da  cama.  Esse  olhar,  fixo  e  frio,  era  mais  horripilante ainda  porque  a  cabeça permanecia numa imobilidade semelhante à dos crânios que os médicos colocam em cima da mesa. O corpo inteiramente modelado pelos lençóis da cama anunciava que  os membros  do  ancião  conservavam  a  mesma  rigidez.  Tudo  estava  morto, menos os olhos. Por fim, os sons que saíam de sua boca tinham qualquer coisa de mecânico.  Don  Juan  sentiu  certa vergonha de  chegar  junto  ao  leito  de  seu  pai moribundo quando ainda guardava no peito um ramalhete da cortesã, e levando até ali os perfumes da festa e os aromas do vinho.
"Estás te divertindo!", exclamou o ancião ao avistar o filho. No  mesmo  instante,  a  voz  pura  e  ligeira  de  uma  cantora  que  maravilhava  os convivas, reforçada pelos acordes da viola com que ela se acompanhava, dominou o ronco da tormenta, e ressoou naquele quarto fúnebre. Don Juan não quis ouvir essa selvagem afirmação de seu pai.
Bartolomeo disse: "Não te quero mal por isso, meu filho". A  frase  cheia  de  doçura  fez  mal  a  don  J uan,  que  não  perdoou  o  pai  por  essa bondade pungente.
 "Que remorsos eu sinto, meu pai!", disse-lhe hipocritamente. "Pobre J uanito", recomeçou o moribundo com voz surda, "sempre fui tão meigo contigo que não serias capaz de desejar minha morte?"
"Oh!", exclamou don J uan, "se fosse possível restituir-te a vida dando uma parte da minha!" ("Sempre podemos dizer essas coisas", pensava o dissipador, "é como se eu oferecesse o mundo à minha amante!") Mal concluiu seu pensamento, o velho cão de caça latiu. Aquela voz inteligente fez don Juan estremecer; teve a impressão de ter sido compreendido pelo cachorro.
"Eu  bem  sabia,  meu  filho,  que  podia  contar  contigo",  exclamou  o  moribundo. "Eu viverei. Vai, serás feliz. Eu viverei, mas sem retirar um único dos dias que te pertencem."
"Está delirando", pensou don Juan. Depois acrescentou bem alto: "Sim,  meu  pai  querido,  viverás,  decerto,  tanto  quanto  eu,  pois  tua  imagem estará permanentemente dentro do meu coração." 
"Não  se  trata  dessa  vida",  disse  o  velho  senhor  reunindo  suas  forças  para recostar-se,  porque  se  comoveu  ao  ter  uma  dessas  suspeitas  que  só  nascem  na cabeceira dos agonizantes. "Escuta, meu filho", recomeçou com a voz enfraquecida por  esse  último  esforço,  "tenho  tão  pouca  vontade  de  morrer  como  tu  tens  de dispensar tuas amantes, o vinho, os cavalos, os falcões, os cães e o ouro." 
"Eu  bem  acredito",  pensou  o  filho  ao  se  ajoelhar  à  cabeceira  do  leito  e  beijar uma das mãos cadavéricas de Bartolomeo. 
"Mas", recomeçou em voz alta, "meu pai, meu querido pai, é preciso se submeter à vontade de Deus."
"Deus sou eu", retomou o ancião, resmungando.
"Não  blasfemes",  exclamou  o  rapaz  ao  ver  o  ar  ameaçador  que  assumiam  as feições de seu pai. "Cuidado com o que dizes, recebeste a extrema-unção, e eu não me conformaria em ver-te morrer em estado de pecado."
"Queres me ouvir?", exclamou o moribundo, cuja boca deu um rangido. Don J uan se calou. I mpôs-se um terrível silêncio. Pelos silvos pesados da neve ainda chegavam, tênues como um dia raiando, os acordes da viola e a voz deliciosa.
O moribundo sorriu.
"Agradeço-te por teres convidado cantoras, por teres trazido música! Uma festa, mulheres jovens e belas, alvas, de cabelos negros! Todos os prazeres da vida, deixa-os ficarem, pois vou renascer."
"O delírio está no auge", pensou don Juan."Descobri um meio de ressuscitar. Ouve! Procura na gaveta da mesa, vais abri-la apertando uma mola escondida pelo grifo."
“Achei, meu pai."
“Aí, isso, pega um frasquinho de cristal de rocha."
“Aqui está."
"Dediquei vinte anos a..."
Nesse momento, o ancião sentiu o fim se aproximar e juntou toda a sua energia para dizer: "Logo que eu tiver dado o último suspiro, me esfregarás todo com essa água, e renascerei."
"Há bem pouca água", retrucou o rapaz.
Se Bartolomeo não conseguia mais falar, ainda tinha a faculdade de ouvir e ver; com  essas  palavras, sua  cabeça  se  virou  para  don  Juan  num  movimento assustadoramente  brusco,  seu  pescoço ficou  torto  como  o  de  uma  estátua  de mármore  que  o  pensamento  do  escultor  condenou  a olhar  de  lado,  seus  olhos dilatados contraíram uma horripilante imobilidade. Estava morto, morto, perdendo sua  única,  sua  derradeira  ilusão. Ao  procurar  abrigo  no  coração  de  seu  filho,  ali encontrou  um  túmulo  mais  profundo  que  os  túmulos  que  os  homens  costumam cavar para seus mortos. Assim, seus cabelos ficaram arrepiados de horror, e seu olhar convulso ainda falava. Era um pai irado se levantando de seu sepulcro para pedir vingança a Deus!
"Pronto! O coitado se acabou", exclamou don Juan.
Apressado em observar no clarão da lamparina o misterioso cristal, assim como um bebedor consulta sua garrafa ao final da refeição, ele não tinha visto os olhos do  pai  embranquecerem.  O  cachorro,  de  boca  escancarada,  contemplava alternadamente seu dono e o elixir, assim como don J uan olhava ora para o pai, ora para o frasco. A lamparina soltava chamas ondulantes. O silêncio era profundo, a viola  emudecera.  Belvidero  estremeceu  acreditando  ver  seu  pai  se  mexer.
Intimidado  com  a  expressão  rígida  de  seus  olhos  acusadores,  fechou-os,  como fecharia uma persiana batida pelo vento durante uma noite de outono. Manteve-se em pé, imóvel, perdido num mundo de pensamentos.
De  repente,  um  ruído  áspero,  lembrando  o  rangido  de  molas  enferrujadas, quebrou o silêncio. Don Juan, surpreendido, quase deixou o frasco cair. Um suor mais  frio  que  o  aço  de  um  punhal,  brotou  de  seus  poros.  Um  galo  de  madeira pintada  surgiu  no  alto  de  um  relógio  e  cantou  três  vezes.  Era  uma  dessas engenhosas  máquinas  que  ajudavam  os  cientistas  daquela  época  a  serem acordados  à  hora  marcada  para  seus  trabalhos.  A  aurora  já  avermelhava  as vidraças. Don Juan tinha passado dez horas a refletir. O velho relógio era mais fiel em seu serviço do que ele no cumprimento de seus deveres para com Bartolomeo. Aquele  mecanismo  era  composto  de  madeiras,  polias,  cordas,  engrenagens,  ao passo que ele possuía esse mecanismo próprio do homem, chamado coração. Para  não  mais  se  arriscar  a  perder  o  misterioso  licor,  o  cético  don  Juan  o recolocou na gaveta da mesinha gótica. Nesse momento solene, ouviu nas galerias um surdo tumulto: eram vozes confusas, risos abafados, passos ligeiros, frufru de sedas, enfim, o barulho de um grupo alegre que tratava de se recolher. Abriu-se a porta,  e  o  príncipe,  os  amigos  de  don  J uan,  as  sete  cortesãs  e  as  cantoras apareceram  na  desordem  estranha  em  que  se  encontram  as  bailarinas  flagradas pelos  clarões  da  manhã,  quando  o  sol  luta  com  as  luzes  desmaiadas  das  velas.
Vinham todos oferecer ao jovem herdeiro os consolos de praxe. "Oh!, oh!, então o pobre don J uan estaria levando a sério essa morte?", disse o príncipe ao ouvido de Brambilla.
"Mas o pai dele era um homem muito bom", ela respondeu. No  entanto,  as  meditações  noturnas  de  don  Juan  haviam  conferido  às  suas feições  uma  expressão  tão  impressionante  que  impôs  o  silêncio  ao  grupo.  Os homens ficaram imóveis. As mulheres, cujos lábios estavam ressecados pelo vinho, cujas faces estavam violáceas pelos beijos, ajoelharam-se e começaram a rezar. Don Juan  não  pôde  deixar  de  estremecer  quando  viu  os  esplendores,  as  alegrias,  os risos, os cantos, a juventude, a beleza, o poder, toda a vida personificada proster-nando-se  assim  diante  da  morte. Mas,  naqueles  tempos,  na  adorável  Itália  o deboche  e  a  religião  se  casavam  tão  bem  que  ali a  religião  era  um  deboche  e  o deboche,  uma  religião!  O  príncipe  apertou  afetuosamente  a  mão  de  don  Juan; depois, ao terem todos os rostos esboçado simultaneamente a mesma careta, entre a tristeza e a indiferença, aquela fantasmagoria desapareceu, deixando vazia a sala.
 Era bem a imagem da vida! Ao descer as escadas, o príncipe disse a Rivabarella: "Pois é! Quem diria que a impiedade de don J uan era fanfarronice? Ele ama o pai!"
"Reparaste no cão preto?", perguntou Brambilla.
"Ei-lo imensamente rico", retrucou suspirando Bianca Cavatolino.
"Que me importa!", exclamou a orgulhosa Veronese, aquela que havia quebrado a bomboneira.
"Como,  o  que  te  importa?",  exclamou  o  duque.  "Com  seus  escudos  ele  é  tão príncipe quanto eu."
Vacilando  entre  mil  pensamentos,  de  início  don  J uan  pairou  entre  diversas decisões.  Depois  de  ter  avaliado  o  tesouro  acumulado  por  seu  pai,  voltou,  à noitinha, ao quarto da morte, com a alma plena de um egoísmo horripilante. No aposento  encontrou  toda  a  criadagem  de  sua  casa  ocupada  em  juntar  os ornamentos do catafalco onde o finado monsenhor seria exposto no dia seguinte, no meio de uma fantástica câmara-ardente, curioso espetáculo que toda a Ferrara devia  ir  admirar.  Don  J uan  fez  um  sinal,  e  todos  os  seus  domésticos  pararam, perplexos, trêmulos.
Deixai-me sozinho aqui", disse com voz alterada, "só entrareis no momento em que eu sair."
Quando  os  passos  do  velho  servidor,  que  era  o  último  a  sair,  ecoaram tenuamente  nos  ladrilhos,  don  J uan  fechou  precipitadamente  a  porta  e,  certo  de estar só, exclamou: "Tentemos!"
O  corpo  de  Bartolomeo  estava  deitado  sobre  uma  mesa  comprida.  Para escamotear de todos os olhares o espetáculo horrendo de um cadáver, cuja extrema decrepitude e magreza faziam lembrar um esqueleto, os embalsamadores tinham posto sobre o corpo uma mortalha que o envolvia todo, menos a cabeça. Aquela espécie  de  múmia  jazia  no  meio  do  quarto;  e  a  mortalha,  naturalmente  mole,
vagamente  modelava  as  formas,  pontiagudas,  rígidas  e  delgadas.  O  rosto apresentava grandes manchas arroxeadas que indicavam a necessidade de terminar o embalsamamento. Apesar do ceticismo de que se armara, don J uan tremeu ao destampar  o  mágico  frasco  de  cristal.  Quando  chegou  perto  da  cabeça,  teve  até mesmo  de  esperar  um  instante,  tanto  que  tremia.  Mas  desde  muito  cedo  aquele jovem fora sabiamente corrompido pelos costumes de uma corte dissoluta; assim,uma  reflexão  digna  do  duque  de  Urbino  veio  lhe  dar  a  coragem  que  uma  viva sensação de curiosidade estimulava; parecia até que o demônio tinha lhe soprado essas palavras que ecoaram em seu coração: "Embebe um olho!". Pegou um pano, e, depois de molhá-lo no precioso licor, passou-o levemente sobre a pálpebra direita do cadáver. O olho se abriu.
"Ah!,  ah!",  disse  don  J uan  apertando  o  frasco  na  mão,  assim  como  em  sonho apertamos o galho a que estamos suspensos no alto de um precipício.Ele via um olho cheio de vida, um olho de criança numa caveira; ali dentro a luz tremia  no  meio  de  um  fluido  jovem!  E,  protegida  por  belos  cílios  negros,  ela cintilava, semelhante a esses clarões estranhos que o viajante enxerga num campo deserto,  em  noites  de  inverno.  Aquele  olho  flamejante  parecia  querer  se  atirar sobre don J uan, e pensava, acusava, condenava, ameaçava, julgava, falava, gritava, mordia. Todas as paixões humanas ali se agitavam. Eram as súplicas mais ternas: a cólera dos reis, depois o amor de uma moça pedindo graça a seus carrascos; por fim o olhar profundo que um homem lança sobre os homens ao escalar o último degrau do cadafalso. Explodia tanta vida naquele fragmento de vida que don Juan
recuou, apavorado; andou pelo quarto, sem se atrever a olhar para aquele olho, que ele revia no assoalho, nas tapeçarias. O quarto estava salpicado de pontos cheios de fogo, de vida, de inteligência. Por toda parte brilhavam olhos, que uivavam atrás dele.
"Ele  bem  que  teria  vivido  mais  cem  anos",  exclamou,  involuntariamente,  no momento  em  que,  levado  até  diante  de  seu  pai  por  um  ímpeto  diabólico, contemplou aquela centelha luminosa.
De repente a pálpebra inteligente se fechou e se abriu bruscamente, como a de uma mulher que consente. Tivesse uma voz gritado "Sim!", don J uan não teria se apavorado mais.
"Que fazer?", pensou.
Teve a coragem de tentar fechar aquela pálpebra branca. Seus esforços foram inúteis.
"Furá-lo? Será talvez um parricídio?", perguntou a si mesmo.
"Sim", disse o olho dando uma piscada de espantosa ironia.
"Ah!, ah!", exclamou don Juan, "aí dentro tem feitiçaria."
E aproximou-se do olho para esmagá-lo. Uma grossa lágrima rolou pelas faces encovadas do cadáver e caiu na mão de Belvidero.
"Está escaldante", exclamou, sentando-se.
Essa luta o cansara como se, a exemplo de Yacob, tivesse combatido contra um anjo. Por fim, levantou-se dizendo: "Tomara que não haja sangue!"Em seguida, reunindo toda a coragem necessária para ser covarde, esmagou o olho,  apertando-o  com  um  pano,  mas  sem  olhá-lo.  Fez-se  ouvir  um  gemido inesperado, mas terrível. O pobre cão de caça expirava, uivando.
"Será  que  saberia  o  segredo?",  perguntou-se  don  Juan  olhando  para  o  animal fiel.
Don J uan Belvidero passou por um filho piedoso. Ergueu um monumento de mármore  branco  sobre  o  túmulo  do  pai  e  entregou  a  execução  das  imagens  aos mais famosos artistas da época. Só ficou perfeitamente tranqüilo no dia em que a estátua paterna, ajoelhada diante da Religião, impôs seu peso enorme sobre aquela cova no fundo da qual enterrou o único remorso que aflorara em seu coração nos momentos de lassidão física. Ao inventariar as imensas riquezas acumuladas pelo velho  orientalista,  don  J uan  tornou-se  avarento:  não  tinha  ele  de  prover financeiramente  duas  vidas  humanas?  Seu  olhar  profundamente  escrutador penetrou nos princípios da vida social e abarcou o mundo tanto melhor quanto o via através de um túmulo. Analisou os homens e as coisas para liquidar de vez com o Passado, representado pela História, com o Presente, configurado pela Lei, com o Futuro, revelado pelas Religiões. Pegou a alma e a matéria, jogou-as num crisol, e nada encontrou; desde então, tornou-se don Juan.
Senhor das ilusões da vida, jovem e belo, lançou-se na existência desprezando o mundo,  mas  apoderando-se  do  mundo.  Sua  felicidade  não  podia  ser  aquela felicidade burguesa que se delicia com um cozido periódico, com um aquecedor no leito durante o inverno, com uma lamparina para a noite e chinelos novos a cada trimestre.  Não,  agarrou  a  vida  como  um  macaco  agarra  uma  noz,  e  depois  de brincar algum tempo com o fruto, despojou habilmente seus invólucros vulgares e degustou sua polpa saborosa.
A poesia e os sublimes arrebatamentos da paixão humana não foram mais alto do  que  seu  calcanhar.  Não  cometeu  mais  o  erro  desses  homens  poderosos  que, imaginando  por  vezes  que  as  pequenas  almas  creem  nas  grandes,  atrevem-se  a trocar  seus  altos  pensamentos  do  futuro  pela  moedinha  de  nossas  idéias transitórias. Bem poderia, como eles, andar com os pés na terra e a cabeça nos céus; mas preferia sentar-se e secar com seus beijos mais de um lábio de mulher meiga, fresca  e  perfumada;  pois,  semelhante  à  morte,  por  onde  passasse  devorava  tudo sem pudor, desejando um amor possessivo, um amor oriental, de prazeres longos e fáceis. Amando nas mulheres apenas a mulher, fez da ironia um traço natural de sua alma. Quando suas amantes se serviam de um leito para subir aos céus, aonde iam  se  perder  num  êxtase  inebriante,  don  J uan  as  seguia,  grave,  expansivo,  tão sincero  quanto  sabe  ser  um  estudante  alemão.  Mas  dizia  "eu",  enquanto  sua amante,  alucinada,  desvairada,  dizia  "nós".  Sabia  admiravelmente  bem  deixar-searrastar  por  uma  mulher.  Era  sempre  muito  inteligente  para  fazê-la  crer  que  ele tremia  como  um  jovem  ginasiano  que  diz  à  sua  primeira  parceira,  num  baile: "Gostas de dançar?". Mas também sabia rugir quando necessário, puxar sua espada poderosa e dobrar os comendadores. Em sua simplicidade havia troça e em suas lágrimas havia riso, pois sempre soube chorar, tanto quanto uma mulher que diz ao marido: "Dá-me uma carruagem, senão morrerei de doença do peito".
Para  os  negociantes,  o  mundo  é  uma  trouxa  de  mercadorias  ou  um  maço  denotas  em  circulação;  para  a  maior  parte  dos  jovens,  é  uma  mulher;  para  certas mulheres, é um homem; para certos espíritos, é um salão, uma coterie, um bairro, uma cidade; para don Juan, o universo era ele mesmo. Modelo de graça e nobreza, espírito sedutor, ancorou sua barca em todas as praias; mas, ao se deixar conduzir, não ia até aonde queria ser levado. Quanto mais viveu, mais duvidou. Ao examinar os homens, não raro adivinhou que a coragem era temeridade; a prudência, uma poltronice; a generosidade, fineza; a justiça, um crime; a delicadeza, uma tolice; a probidade, uma conformação; e, por uma fatalidade singular, deu-se conta de que as  pessoas  realmente  probas,  delicadas,  justas,  generosas,  prudentes  e  corajosas não  mereciam  a  menor  consideração  entre  os  homens.  "Que  brincadeira  fria!", pensava.  "Ela  não  vem  de  um  deus."  E  então,  renunciando  a  um  mundo  melhor, nunca  mais  se  descobriu  ao  ouvir  pronunciar  um  nome  sagrado  e  passou  a considerar os santos de pedra nas igrejas obras de arte. Assim, compreendendo o mecanismo  das  sociedades  humanas,  jamais  feria  demasiado  os  preconceitos, porque não era tão poderoso como o carrasco; mas contornava as leis sociais com essa  graça  e  esse  espírito  tão  bem  reproduzidos  em  sua  cena  com  o  senhor Domingo. Foi, na verdade, o Don J uan de Molière, o Fausto de Goethe, o Manfre de Byron e o Melmoth de Maturin. Grandes imagens traçadas pelos maiores gênios da  Europa,  e  às  quais  não  faltarão  os  acordes  de  Mozart  nem  talvez  a  lira  de Rossini. I magens terríveis que o princípio do mal, existente nos homens, eterniza, e das quais encontramos algumas cópias de século em século: quer esse tipo entre em entendimentos com os homens e encarne-se num Mirabeau, quer se contente de agir em silêncio, como Bonaparte, ou de subjugar o universo com ironia, como o divino Rabelais; ou ainda que ria das criaturas, em vez de insultar as coisas, como o marechal de Richelieu; e, talvez melhor, é que ele caçoe a um só tempo dos homens e das coisas, como o nosso mais famoso embaixador. Mas o gênio profundo de don Juan Belvidero resumiu antecipadamente todos esses gênios. Zombou de tudo. Sua vida era um escárnio que abarcava homens, coisas, instituições, idéias. Quanto à eternidade, depois de ter conversado familiarmente durante meia hora com o papa Júlio II, dissera-lhe, rindo: "Se  é  imprescindível  escolher,  prefiro  acreditar  em  Deus  a  crer  no  diabo;  o poder unido à bondade sempre oferece mais recursos do que tem o Gênio do Mal."
"Sim, mas Deus quer que se faça penitência neste mundo..."
"Então  pensais  sempre  em  vossas  indulgências?",  respondeu  Belvidero.  "Pois bem!  Para  me  arrepender  das  faltas  de  minha  primeira  vida,  tenho  toda  uma existência em reserva."
"Ah!,  se  compreendes  assim  a  velhice",  exclamou  o  papa,  "te  arriscas  a  ser canonizado."
"Depois de vossa elevação ao papado, pode-se acreditar em tudo."
E  foram  ver  os  operários  que  construíam  a  imensa  basílica  consagrada  a  são Pedro.
“São  Pedro  é  o  homem  de  gênio  que  instituiu  o  nosso  duplo  poder",  disse  o papa a don J uan, "ele merece esse monumento. Mas às vezes, de noite, penso que um dilúvio passará a esponja em tudo isso, e será preciso recomeçar..."
Don J uan e o papa caíram na risada: tinham se entendido. Um tolo teria ido, no dia  seguinte,  divertir-se  com  J úlio  I I   em  casa  de  Rafael  ou  na  deliciosa  Villa Madama. Mas Belvidero foi vê-lo oficiar pontificalmente, a fim de se convencer as dúvidas que tinha. Num deboche Delia Rovere seria capaz de se desmentir e de comentar o Apocalipse. Todavia,  essa  lenda  não  foi  criada  para  fornecer  material  aos  que  quiserem escrever biografias de don J uan. Ela está destinada a provar às pessoas honestas que  Belvidero  não  morreu  num  duelo  com  uma  pedra,  como  certas  litografias
querem fazer crer. Quando  don  J uan  Belvidero  atingiu  a  idade  de  sessenta  anos,  foi  se  fixar  na Espanha. Lá, em seus dias de velhice, casou-se com uma jovem e encantadora andaluza. Mas, de propósito, não foi bom pai nem bom esposo. Tinha observado que somos mais ternamente amados pelas mulheres com quem quase não sonhamos.
Doña  Elvira,  criada  santamente  por  uma  velha  tia  no  fundo  da Andaluzia,  num castelo  a  poucas  léguas  de  San  Lucar,  era  toda  devoção  e  toda  graça.  Don  J uan pressentiu que aquela jovem seria mulher de combater muito tempo uma paixão antes  de  ceder;  portanto,  esperou  poder  conservá-la  virtuosa  até  sua  morte.  Foi uma brincadeira levada a sério, uma partida de xadrez que ele quis se reservar para jogar  durante  a  velhice.  Tendo  aprendido  com  todas  as  faltas  cometidas  por  seu pai, Bartolomeo, don J uan resolveu submeter as menores ações da velhice ao êxito do drama que devia se encenar em seu leito de morte. Assim,  a  maior  parte  de  suas  riquezas  ficou  enfurnada  nos  porões  de  seu palácio  em  Ferrara,  aonde  raramente  ia.  Quanto  ao  resto  de  sua  fortuna,  ele  a investiu  numa  renda  vitalícia,  a  fim  de  que  sua  mulher  e  seus  filhos  tivessem interesse  em  prolongar  sua  vida,  espécie  de  artimanha  que  seu  pai  deveria  terpraticado;  mas  essa  especulação  de  maquiavelismo  não  lhe  foi  muito  necessária. Seu filho, o jovem Filipe Belvidero, tornou-se um espanhol tão conscienciosamente religioso quanto seu pai era ímpio, talvez em virtude do provérbio "Pai avarento, filho  pródigo".  O  abade  de  San  Lucar  foi  escolhido  por  don  J uan  para  dirigir  a consciência  da  duquesa  de  Belvidero  e  de  Filipe.  Esse  eclesiástico  era  um  santo homem, de belo porte, de uma elegância admirável, com belos olhos pretos, uma cabeça  como  a  de  Tibério,  fatigada  pelos  jejuns,  branca  de  maceração,  e diariamente  tentado,  como  são  todos  os  solitários.  Talvez  o  velho  nobre  ainda esperasse  poder  matar  um  monge  antes  que  seu  primeiro  contrato  de  vida expirasse.
Mas, ou porque o padre era tão inteligente como o próprio don J uan, ou porque doña  Elvira  tinha  mais  prudência  ou  virtude  do  que  a  Espanha  confere  às mulheres, don J uan foi obrigado a passar seus últimos dias como um velho pároco de aldeia, sem escândalo em casa. Às vezes, sentia prazer em flagrar seu filho ou a mulher  em  erro  nos  seus  deveres  religiosos,  e  queria  imperiosamente  que cumprissem  todas  as  obrigações  impostas  aos  fiéis  pela  corte  de  Roma.  Enfim, nunca era tão feliz como ao ouvir o galante abade de San Lucar, doña Elvira e Filipe discutindo um caso de consciência.
Contudo, apesar dos cuidados extraordinários que o senhor don J uan Belvidero dava à própria pessoa, os dias da decrepitude chegaram; com essa idade da dor, vieram os gritos da impotência, gritos ainda mais lancinantes na medida em que mais ricas eram as recordações de sua efervescente juventude e de sua voluptuosa maturidade. Esse homem, em quem o grau último de escárnio consistia em levar os outros a crer nas leis e nos princípios de que ele caçoava, adormecia à noite com um "talvez". Esse modelo de bom-tom, esse duque, vigoroso numa orgia, soberbo nas  cortes,  gracioso  junto  às  mulheres  cujo  coração  ele  dobrara  assim  como  um camponês dobra uma vara de vime, esse homem de gênio com uma coriza teimosa, uma  ciática  importuna,  uma  gota  brutal.  Via  seus  dentes  o  abandonarem  assim como, no fim de uma noitada, as senhoras mais brancas, as mais bem-vestidas se vão,  uma  a  uma,  deixando  o  salão  deserto  e  despojado.  Finalmente,  suas  mãos ousadas tremeram, suas pernas esbeltas cambalearam, e numa noite  a  apoplexia apertou  seu  pescoço  com  suas  mãos  ganchudas  e  gélidas.  Desde  esse  dia  fatal, tornou-se vagaroso e duro.
Acusava a dedicação de seu filho e de sua mulher, alegando às vezes que seus cuidados,  comoventes  e  delicados,  só  lhe  eram  tão  carinhosamente  prestados porque ele investira toda a sua fortuna em rendas vitalícias. Então, Elvira e Filipe derramavam lágrimas amargas e redobravam as carícias junto do malicioso ancião, cuja  voz  alquebrada  se  tornava  afetuosa  ao  lhes  dizer:  "Meus  amigos, minha querida mulher, vós me perdoais, não é? Atormento-vos um pouco. Ai de mim! Ó Deus! Como te serves de mim para pôr à prova essas duas celestes criaturas? Eu, que deveria ser a alegria deles, sou seu flagelo".
Foi assim que os amarrou à cabeceira de sua cama, fazendo-os esquecer meses inteiros de impaciência e crueldade em troca de uma hora em que exibia para eles os tesouros sempre novos de sua graça e uma falsa ternura. Sistema paterno que deu  infinitamente  mais  certo  do  que  aquele  que  outrora  seu  pai  empregara  com ele.  Por  fim,  a  doença  chegou  a  tal  estágio  que,  para  pô-lo  na  cama,  era  preciso manobrá-lo  como  se  fosse  uma  faluca  entrando  num  canal  perigoso.  Depois, chegou  o  dia  da  morte.  Esse  personagem  brilhante  e  cético,  em  quem  só  o
entendimento  sobrevivia  à  mais  atroz  de  todas  as  destruições,  viu-se  entre  um médico  e  um  confessor,  suas  duas  antipatias.  Mas  foi  cordial  com  os  dois.  Não havia  para  ele  uma  luz  cintilante  atrás  do  véu  do  porvir?  Sobre  essa  tela,  de chumbo  para  os  outros  e  diáfana  para  ele,  as  leves,  as  encantadoras  delícias  da juventude brincavam como sombras.
Foi numa bela noite de verão que don J uan sentiu a aproximação da morte. O céu da Espanha era de uma admirável pureza, as laranjeiras perfumavam o ar, as estrelas  destilavam  luzes  vivas  e  frescas,  a  natureza  parecia  lhe  dar  garantias seguras  da  sua  ressurreição,  um  filho  piedoso  e  obediente  o  contemplava  com amor  e  respeito.  Por  volta  das  onze  horas,  quis  ficar  a  sós  com  essa  cândida criatura.
"Filipe",  disse-lhe  com  voz  tão  terna  e  tão  afetuosa  que  o  rapaz  estremeceu  e chorou de felicidade. Nunca esse pai inflexível tinha pronunciado assim: "Filipe!". "Escuta, meu filho", retomou o moribundo. "Sou um grande pecador. Por isso pensei, durante toda a minha vida, na morte. Outrora fui amigo do grande papa J úlio I I . Esse ilustre pontífice temeu que a excessiva excitação de meus sentidos me levasse  a  cometer  um  pecado  mortal  entre  o  momento  em  que  eu  expirasse  e aquele em que tivesse recebido os santos óleos; deu-me de presente um frasco no qual  existe  a  água  santa  que  jorrou  outrora  dos  rochedos  no  deserto.  Guardei  o segredo dessa dilapidação do tesouro da I greja, mas estou autorizado a revelar o mistério a meu filho, in articulo mortis. Encontrarás o frasco na gaveta dessa mesa gótica  que  nunca  saiu  de  perto  da  cabeceira  de  meu  leito...  O  precioso  cristal poderá servir-te ainda, meu bem-amado Filipe. J uras-me, por tua salvação eterna, que executarás rigorosamente as minhas ordens?"
Filipe  olhou  para  seu  pai.  Don  J uan  conhecia  bem  demais  a  expressão  dos sentimentos humanos para não morrer em paz acreditando naquele olhar, assim como seu próprio pai morreu em desespero acreditando no seu.
"Merecerias um outro pai", recomeçou don J uan. "Ouso confessar-te, meu filho,que no momento em que o respeitável abade de San Lucar me ministrava o viático, eu pensava na incompatibilidade de dois poderes tão amplos como os do diabo e de Deus."
"Ah!, meu pai!"
"E pensava que, quando Satanás fizer a paz, deverá, sob pena de ser um grande miserável,  conceder  o  perdão  a  seus  seguidores.  Esse  pensamento  me  persegue. Portanto, eu iria para o inferno, meu filho, se não cumprisses as minhas vontades." "Ah!, dizei-as prontamente, meu pai!"
“Assim  que  eu  fechar  os  olhos",  retomou  don  J uan,  "daqui  a  alguns  minutos talvez, pegarás o meu corpo, quente ainda, e o estenderás sobre uma mesa no meio deste quarto. Depois apagarás esta lamparina; a luz das estrelas deve bastar. Tu me despojarás de minhas roupas; e, enquanto recitares os Pater e as Ave elevando a tua alma a Deus, terás o cuidado de umedecer, com esta água santa, meus olhos, meus lábios, toda a cabeça primeiro, depois sucessivamente os membros e o corpo; mas,  meu querido  filho,  o  poder  de  Deus  é  tão  grande  que  nada  deverá  te espantar!"
Aqui,  don  Juan,  sentindo  a  morte  chegar,  acrescentou  numa  voz  terrível "Segura bem o frasco." Depois expirou suavemente nos braços de um filho cujas lágrimas abundantes rolaram por sua face irônica e pálida. Era perto da meia-noite quando don Filipe Belvidero pôs o cadáver de seu pai em  cima  da  mesa. Após  ter  beijado  a  fronte  ameaçadora  e  os  cabelos  grisalhos, apagou a lamparina. A claridade suave que vinha do luar, cujos reflexos estranhos iluminavam o campo, permitiu ao piedoso Filipe entrever indistintamente o corpo de  seu  pai,  como  alguma  coisa  branca no  meio  da  sombra.  O  jovem  embebeu  o pano no licor e, mergulhado na prece, ungiu aquela cabeça sagrada, em meio a um profundo  silêncio.  Bem  que  ouvia  uns  estremecimentos indescritíveis,  mas  os atribuía  aos  balanços  da  brisa  nas  copas  das  árvores.  Quando  molhou  o braço direito, sentiu seu pescoço fortemente apertado por um braço jovem e vigoroso, o braço de seu pai. Soltou um grito lancinante e deixou cair o frasco, que se quebrou. O licor evaporou. Os empregados do castelo acorreram, armados de tochas. Aquele grito  os  tinha  apavorado  e surpreendido,  como  se  a  trombeta  do  Juízo  Final houvesse  sacudido  o  universo.  Num instante o  quarto  encheu-se  de  gente.  A multidão trêmula viu don Filipe desmaiado, mas preso pelo braço poderoso do pai, que apertava o seu pescoço. Depois, coisa sobrenatural, a platéia viu a cabeça de don Juan, tão jovem, tão bela como a de Antinoo; uma cabeça de cabelos pretos, olhos brilhantes, boca vermelha, e que se agitava horrivelmente sem poder mexer o esqueleto ao qual pertencia.Um velho servidor gritou: "Milagre!". E todos os espanhóis repetiram: Milagre!".
Piedosa demais para admitir os milagres da magia, dona Elvira mandou buscar o  abade  de  San Lucar.  Quando  o  prior  contemplou  com  os  próprios  olhos  o milagre,  resolveu  se  aproveitar, como  homem  de  espírito  e  como  padre  que  era, pois tudo o que queria era aumentar suas rendas. Ao declarar de imediato que o senhor  don  Juan  seria  infalivelmente  canonizado, anunciou a  cerimônia  da apoteose no seu convento, que de agora em diante se chamaria, disse ele, San Juan de Lucar. Diante dessas palavras, a cabeça fez uma careta um tanto jocosa.
O gosto dos espanhóis por solenidades dessa espécie é tão conhecido que não deve ser difícil acreditar nas fantasias religiosas com as quais a abadia de San Lucar celebrou o traslado do bem-aventurado don Juan Belvidero para sua igreja. Alguns dias depois da morte desse ilustre senhor, o milagre de sua ressurreição imperfeita tinha  se  espalhado  tão  intensamente  de  aldeia  em  aldeia, num  raio  de  mais  de cinquenta léguas em torno de San Lucar, que já foi uma comédia ver os curiosos pelos caminhos; vieram de todos os lados, atraídos por um Te De um cantado à luz de tochas.
A antiga mesquita do convento de San Lucar, maravilhoso edifício construído pelos mouros e cujas abóbadas ouviam havia três séculos o nome de J esus Cristo substituindo o de Alá, não foi suficiente para conter a multidão que acorrera a fim de assistir à cerimônia. Apertados como formigas, fidalgos com mantos de veludo e  armados  com  suas  boas  espadas  mantinham-se  em  pé  em  torno  das pilastras, sem achar lugar para flexionar os joelhos que só ali se flexionavam. Camponesas encantadoras, cujas vasquinhas delineavam as formas amorosas, davam o braço a velhos  de  cabelos grisalhos.  J ovens  de  olhos  de  fogo  encontravam-se  ao  lado  de velhas enfeitadas. Depois havia casais fremindo de contentamento, noivas curiosas levadas  por  seus  bem-amados;  recém-casados; crianças  medrosas  segurando-se pelas  mãos.  Esse  mundo  de  gente  que  lá  estava  era  rico  em cores,  brilhante  de contrastes, carregado de flores esmaltadas, fazendo um suave tumulto no silêncio
da  noite.  As  largas portas  da  igreja  se  abriram.  Aqueles  que,  chegando  tarde demais, ficaram do lado de fora, viam de longe, pelos três pórticos abertos, uma cena de que os cenários vaporosos de nossas óperas modernas não conseguiriam dar uma vaga idéia. Devotos e pecadores, apressados em ganhar as boas graças de um  novo  santo,  acenderam  em  sua  homenagem  milhares  de  círios nessa  vasta igreja, chamas interesseiras que conferiram aspectos mágicos ao monumento. As arcadas negras,  as  colunas  e  seus  capitéis,  as  capelas  profundas  e  brilhando  de ouro e prata, as galerias, os rendilhados sarracenos, os traços mais delicados dessa escultura  delicada  desenhavam-se naquela luz  superabundante  como  figuras caprichosas que se formam num braseiro rubro. Era um oceano de fogo, dominado,no fundo da igreja, pelo coro dourado onde se erguia o altar-mor, cuja glória teria rivalizado com a do sol nascente. Com efeito, o esplendor das luminárias de ouro, dos candelabros de prata,  dos  estandartes,  das  borlas,  dos  santos  e  dos  ex-votos ofuscava-se diante do  relicário onde  estava  donjuan.  O  corpo  do  ímpio resplandecia  de  pedrarias,  flores, cristais, diamantes, ouro,  plumas  tão  brancas como  as  asas  de  um  serafim,  e  substituía  no altar  um quadro  de Cristo. Ao  seu redor brilhavam inúmeros círios que lançavam nos ares ondas flamejantes. O bom abade  de  San  Lucar,  paramentado  com  os  hábitos  pontificais,  tendo  sua mitra enriquecida de pedras preciosas, a sobrepeliz, o báculo de ouro, sentava-se, como rei do coro, numa poltrona de luxo imperial, no meio de todo o seu clero, composto de anciões impassíveis de cabelos prateados, vestidos de alvas finas, semelhantes aos santos confessores que os pintores agrupam em volta do Eterno. O mestre-de-capela e os dignitários do capítulo, enfeitados com as brilhantes insígnias de suas vaidades  eclesiásticas,  iam  e  vinham  entre  nuvens  formadas  pelo incenso, lembrando os astros que rolam no firmamento.
Quando chegou a hora do triunfo, os sinos despertaram os ecos do campo, e a imensa  assembléia lançou  a  Deus  o  primeiro  grito  de  louvores  que  inicia  o  Te Deum.  Grito  sublime!  Eram vozes puras  e  leves,  vozes  de  mulheres  em  êxtase misturadas às vozes graves e fortes dos homens, milhares de vozes tão fortes que o órgão não dominou o seu conjunto, apesar do bramido de seus tubos. Só as notas estridentes  da  voz  jovem  dos  meninos  do  coro  e  as  longas  inflexões  de alguns baixos  suscitaram  idéias  graciosas,  pintaram  a  infância  e  a  força,  nesse  concerto encantador de vozes humanas fundidas num sentimento de amor.
Te Deum laudemus! Do centro daquela catedral repleta de mulheres e homens ajoelhados o canto partiu  semelhante  a  uma  luz  que  de  repente  cintila  na  noite,  e  o  silêncio  foi quebrado como por um estrondo de trovão. As vozes subiram com as nuvens de incenso  que  então  projetavam  véus diáfanos  e  azulados  sobre  as  fantásticas maravilhas da arquitetura. Tudo era riqueza, perfume, luz e melodia. No momento em que essa música de amor e gratidão lançou-se em direção ao altar, don Juan, polido  demais  para  não  agradecer,  espirituoso  demais  para  não  entender  o sarcasmo, respondeu com um riso pavoroso e fez uma pose indolente dentro de seu  relicário.  Mas  como  o diabo  o  levou  a  pensar  no  perigo  que  corria  de  ser confundido com um homem comum, com um santo, um Bonifácio, um Pantaleão, ele perturbou aquela melodia de amor dando um berro ao qual se juntaram as mil vozes do inferno. A terra abençoava, o céu amaldiçoava. A igreja tremeu em suas velhas bases.
Te Deum laudemus!, gritava a assembléia."Vão  todos  para  o  diabo,  bestas,  brutos  que  sois! Deus!  Deus!  Carajos demônios, animais, como sois estúpidos com vosso Deus-ancião!"
E  uma  torrente  de  imprecações  rolou  como  um  riacho  de  lavas  em  brasa durante uma erupção do Vesúvio.
Deus Sabaoth! Sabaothl, gritaram os cristãos.
"Insultais a majestade do inferno!", respondeu don Juan, rangendo os dentes. Logo  o  braço  vivo conseguiu  passar  por  cima  do  relicário,  e  ameaçou  a assembléia com gestos marcados pelo desespero e pela ironia.
"O  santo  nos  abençoa",  disseram  as  velhas  senhoras,  as  crianças  e  os  noivos, gente crédula.
Eis como não raro somos enganados nas nossas adorações. O homem superior debocha dos que o louvam, e às vezes louva aqueles de quem debocha no fundo do coração.
No  momento  em  que  o  abade,  prosternado  diante  do  altar,  cantava  "Sancte Johanes, orapro nobis", ele ouviu muito claramente: "O coglione!".
"Mas  o  que  se  passa  lá  em  cima?",  exclamou  o  subprior  ao  ver  o  relicário  se mexer.
"O santo está fazendo o diabo", respondeu o abade. Então aquela cabeça viva se separou violentamente do corpo que já não vivia e caiu sobre o crânio amarelo do oficiante.
"Lembra-te de dona Elvira", gritou a cabeça, devorando a do abade.
Este  deu  um  grito  horripilante,  que  perturbou  a  cerimônia.  Todos  os  padres acorreram e cercaram seu soberano.
"Imbecil,  pois  sim  que  existe  um  Deus!",  gritou  a  voz  no  momento  em  que  o abade, mordido no crânio, expirava.

Tradução de Rosa Freire D'Aguiar

quinta-feira, 11 de agosto de 2016

Miriam - Truman Capote


Durante muitos anos, a sra. H. T. Miller havia morado sozinha num apartamento confortável (dois quartos com quitinete) num prédio de arenito pardo, já reformado, perto do East River. Era viúva: a sra. H. T. Miller tinha uma pensão de valor bastante razoável. Sua renda era reduzida, não tinha amigas para conversar e raras vezes ia além da mercearia da esquina. Os demais moradores do prédio nunca pareciam perceber a presença dela: suas roupas eram comuns, o cabelo era cinza-escuro, preso e com ondulações naturais; ela não usava cosméticos, suas feições eram simples e discretas,  e  no  último  aniversário  fizera  sessenta  e  um  anos.  Suas  atividades  raramente  eram espontâneas: conservava os dois quartos imaculados, fumava um cigarro de vez em quando, fazia a própria comida e cuidava de um canário.
Então  conheceu  Miriam.  Nevava  naquela  noite.  A  sra.  Miller  tinha  terminado  de  enxugar  a louça do jantar e passava os olhos num jornal vespertino quando viu o anúncio de um filme que estava sendo exibido num cinema ali perto. O título soava bem, então ela se enfiou no seu casaco de pele  de  castor,  amarrou  as  galochas  e  saiu  do  apartamento,  deixando  uma  luz  acesa  no vestíbulo: nada a perturbava mais que a sensação de escuridão. A neve estava fina, caía de leve, nem deixava marcas na calçada. O vento que vinha do rio só batia nos cruzamentos. A sra. Miller se apressava, a cabeça curvada, distraída como uma toupeira que cava uma trilha que não sabe onde vai dar. Parou numa drugstore e comprou um pacotinho de balas de hortelã.
Uma fila comprida se estendia na frente da bilheteria; ela tomou seu lugar no fim da fila. Todos iam ter de esperar um pouco (uma voz cansada resmungou). A sra. Miller vasculhou sua bolsa de couro até juntar exatamente o dinheiro trocado para pagar o ingresso. A fila parecia não ter pressa nenhuma,  e ela,  olhando  em  volta  para  se  distrair,  de  repente  notou  uma  garotinha  parada embaixo da marquise.
Tinha o cabelo mais comprido e mais estranho que a sra. Miller já vira; totalmente branco-prata, como o de um albino. Descia até a cintura em fios lisos e soltos. Era magra e de físico frágil. Havia uma elegância simples, especial, no seu jeito de se postar, com os polegares metidos nos bolsos de
um casaco bem justo de veludo cor de ameixa.
A sra. Miller sentiu-se estranhamente agitada e, quando a garotinha lançou um olhar na sua direção, sorriu com simpatia. A garotinha aproximou-se e disse: “A senhora se importa de me fazer um favor?”.
“Com todo o prazer, se eu puder”, respondeu a sra. Miller.
“Ah, é muito fácil. Eu só queria que a senhora comprasse um ingresso para mim; senão eles não me deixam  entrar.  Olhe  aqui,  tenho  o  dinheiro.”  E  graciosamente  entregou  à  sra.  Miller  duas moedas de dez centavos e uma de cinco.
Entraram juntas para ver o filme. O lanterninha levou-as até a sala de espera; o filme ia terminar dali a vinte minutos.
“Eu me sinto como um criminoso de verdade”, disse com alegria a sra. Miller, enquanto sentava.
“Sabe, a gente está fazendo uma coisa contra a lei, não é? Tomara que eu não tenha feito nada de errado. Sua mãe sabe que você está aqui, querida? Sabe, não sabe?”
A garotinha não disse nada. Desabotoou o casaco e dobrou-o no colo. Seu vestido era chique e azul-escuro.  Uma  correntinha  dourada  pendia  sobre  o  pescoço,  e  os  dedos,  delicados  e harmoniosos, brincavam com ela. Enquanto a examinava com mais atenção, a sra. Miller concluiu que o traço verdadeiramente distintivo não era o cabelo, mas os olhos; eram castanhos, firmes, nada tinham de infantil e, por causa do tamanho, pareciam engolir o rosto miúdo.
A sra. Miller ofereceu uma bala de hortelã. “Qual é o seu nome, querida?”
“Miriam”,  respondeu  ela,  como  se,  de  um  modo  curioso,  já  se  tratasse  de  uma  informação familiar.
“Puxa, não é engraçado?... Meu nome também é Miriam. E nem é um nome tão comum assim. Mas não vá me dizer que seu sobrenome é Miller!”
“Só Miriam.”
“Mas não é engraçado?”
“Moderadamente”, respondeu Miriam, e girou a bala de hortelã na língua.
A sra. Miller corou e remexeu-se com desconforto. “Você tem um vocabulário bem vasto para uma garotinha.”
“É mesmo?”
“Bem, é, sim”, respondeu a sra. Miller, mudando apressadamente de assunto: “Gosta de ir ao cinema?”.
“Na verdade não sei”, respondeu Miriam. “Nunca vim ao cinema antes.”
Mulheres começaram a encher a sala de espera; o estrondo das bombas do cinejornal ressoava ao longe. A sra. Miller levantou-se, apertando a bolsa debaixo do braço. “Acho melhor me apressar se quiser pegar um bom lugar”, disse. “Foi bom conhecer você.”
Miriam respondeu com um levíssimo aceno da cabeça.

Nevou a semana inteira. Rodas e passos não faziam ruído na rua, como se a atividade de viver prosseguisse em segredo detrás de uma cortina embaçada mas impenetrável. No silêncio que caía lá fora,  não  havia  céu  nem  terra,  só  neve  pairando  no  vento,  congelando  no  vidro  da  janela, resfriando  os  quartos,  amortecendo  e  silenciando  a  cidade.  Em  todas  as  horas  era necessário manter uma lâmpada acesa, e a sra. Miller perdeu a conta dos dias: sexta-feira não foi diferente de sábado, e no domingo ela foi à mercearia: fechada, é claro.
Naquela noite, fez ovos mexidos e sopa de tomate. Em seguida, depois de vestir um roupão de flanela e passar creme no rosto, enfiou-se na cama com uma bolsa de água quente sob os pés.
Estava lendo o Times quando a campainha tocou. No início, pensou que devia ser engano e quem quer que fosse iria embora. Mas tocou de novo várias vezes e virou um zumbido insistente. Ela olhou para o relógio: passava um pouco das onze horas; não parecia possível, ela sempre dormia às dez. Saiu da cama, atravessou depressa a sala, descalça. “Já vou, por favor, tenha paciência.” O trinco estava  fechado;  ela  o  girou  para  um  lado  e  para  o  outro,  e  a  campainha  não  parava  nem  um
instante. “Pare”, gritou. A lingueta cedeu, e ela abriu a porta dois centímetros. 
“Que foi, pelo amor de Deus?”
“Olá”, disse Miriam.
“Ah... puxa, olá”, respondeu a sra. Miller, avançando hesitante para o vestíbulo. “Você é aquela garotinha.”
“Pensei que não fosse atender nunca mais, mas não tirei o dedo do botão; sabia que estava em casa. Não está contente de me ver?”
A sra. Miller não sabia o que dizer. Viu que Miriam vestia o mesmo casaco de veludo cor de ameixa e agora usava também uma boina para combinar; o cabelo branco estava preso em duas tranças reluzentes e enlaçadas na ponta com duas fitas brancas enormes.
“Já que esperei tanto tempo, a senhora podia pelo menos me deixar entrar”, disse a garotinha.
 “É muito tarde...”
Miriam êtou-a com ar inexpressivo. “Que diferença isso faz? Deixe-me entrar. Está frio aqui fora, e estou com um vestido de seda por baixo.” Depois, com um gesto delicado, afastou a sra. Miller do caminho e entrou no apartamento.
Largou o casaco e a boina numa cadeira. Usava de fato um vestido de seda. Seda branca. Seda branca em fevereiro. A saia era lindamente pregueada, e as mangas eram compridas; a seda fazia um rumor suave enquanto ela andava pela sala. “Gostei da sua casa”, disse. “Gosto do tapete, azul é minha cor favorita.” Tocou numa rosa de papel num vaso sobre a mesinha de café. “Imitação”, comentou, desanimada. “Que triste. As imitações não são tristes?” Sentou-se no sofá, desdobrando a saia com capricho.
“O que você quer?”, perguntou a sra. Miller.
“Sente-se”, pediu Miriam. “Ver pessoas em pé me deixa nervosa.”
A sra. Miller afundou-se num tamborete acolchoado. “O que você quer?”, repetiu.
“Sabe, acho que não está contente por eu ter vindo.”
Pela segunda vez, a sra. Miller não teve o que responder; sua mão se mexeu vagamente. Miriam deu uma risadinha e recostou-se num monte de almofadas de algodão estampado. A sra. Miller observou que a garota estava menos pálida do que lembrava; as faces estavam coradas.
“Como soube onde eu morava?”
Miriam franziu as sobrancelhas. “Isso não está em questão. Qual é o seu nome? Qual é o meu?” “Mas não estou na lista telefônica.”
“Ah, vamos falar de outra coisa.”
A sra. Miller disse: “Sua mãe deve ser louca para deixar uma criança como você sair na rua a esta hora da noite, e ainda por cima com roupas tão ridículas. Ela deve estar doida”.
Miriam levantou-se e caminhou até um canto onde uma gaiola de passarinho coberta por uma capa pendia do teto numa corrente. Deu uma espiada por baixo da capa. “É um canário”, disse. “A senhora se importa se eu o acordar? Queria ouvi-lo cantar.”
“Deixe o Tommy em paz”, respondeu a sra. Miller, aflita. “Não se atreva a acordá-lo.”
“Claro”, respondeu Miriam. “Mas não vejo por que motivo não posso ouvi-lo cantar.” E depois:
“Tem alguma coisa para comer? Estou morrendo de fome! Podia ser leite e um sanduíche de geleia, já estava bom”.
“Olhe”, disse a sra. Miller, erguendo-se do tamborete, “olhe, se eu fizer uns sanduíches bem gostosos, você vai ser boazinha e vai embora para casa? Já passa de meia-noite, tenho certeza.”
“Está nevando”, censurou-a Miriam. “Está frio e escuro.”
“Bem,  você  não  devia  ter  vindo  aqui,  para  começo  de  conversa”,  respondeu  a  sra.  Miller, fazendo força para manter a voz sob controle. “Não posso fazer nada quanto ao tempo lá fora. Se quer algo para comer, vai ter de me prometer que vai embora.”
Miriam esfregou uma trança na bochecha. Os olhos ficaram pensativos, como se ponderassem a proposta. Ela se virou para a gaiola. “Muito bem”, disse, “prometo.”

Quantos anos ela tem? Dez? Onze? A sra. Miller, na cozinha, abriu um frasco de geléia de morango
e cortou quatro fatias de pão. Serviu um copo de leite e parou a fim de acender um cigarro. E por que
veio  aqui?  A  mão  tremeu  quando  ela  segurou  o  fósforo,  fascinada,  até  que  queimou  o  dedo.  O canário começou a cantar; cantar como cantava de manhã e em nenhuma outra hora. “Miriam”, ela chamou. “Miriam, eu falei para não perturbar o Tommy.” Não houve resposta. Chamou de novo; só ouviu o canário. Tragou o cigarro e descobriu que tinha acendido a ponta do filtro e — ah, puxa, não podia perder a calma.
Levou a comida numa bandeja, que pôs em cima da mesinha de café. Primeiro viu que a gaiola continuava coberta com a capa. E Tommy cantava. Teve uma sensação esquisita. E não havia ninguém na sala. A sra. Miller atravessou uma ante-sala que ia dar no quarto de dormir; na porta, ela quase ficou sem ar.
“O que está fazendo?”, perguntou.
Miriam ergueu os olhos para ela, e no seu olhar havia algo que não era comum. Estava de pé junto à escrivaninha, uma caixa de jóias aberta diante dela. Por um minuto, observou a sra. Miller,forçou seus olhos a se encontrarem e sorriu. “Não tem nada que preste aqui”, disse. “Mas gostei disto.” A mão suspendeu um broche de camafeu. “É chique.” “Eu  acho...  talvez  fosse  melhor  pôr  isso  de volta  no  lugar”,  disse  a  sra.  Miller,  sentindo  de repente  a  necessidade  de  algum  apoio. Encostou-se  na  ombreira  da  porta;  a  cabeça  ficou insuportavelmente pesada; uma pressão acelerou o ritmo dos batimentos cardíacos. A luz pareceu piscar, com defeito. “Por favor, criança... um presente do meu marido...”
“Mas é lindo, e eu o quero”, disse Miriam. “Dê isso para mim.”
Quando a sra. Miller se aprumou, procurando formar uma frase capaz de salvar seu broche de algum jeito, ocorreu-lhe que não havia ninguém a quem pudesse recorrer; estava sozinha; um fato que havia muito não êgurava entre seus pensamentos. Sua simples ênfase era atordoante. Mas ali no seu próprio quarto, na cidade silenciada pela neve, havia provas que ela não podia ignorar ou, sabia disso com uma clareza assombrosa, provas às quais não podia resistir.

Miriam comeu avidamente, e, quando os sanduíches e o leite acabaram, seus dedos êzeram movimentos de teia de aranha pelo prato, recolhendo as migalhas. O camafeu brilhava na sua blusa, o  perêl  louro  parecia  um  reëexo  jocoso  daquela  que  o  usava.  “Isso  estava  muito  bom”, suspirou ela, “se bem que agora um bolinho de amêndoas ou umas cerejas seriam o ideal. Doces são adoráveis, a senhora não acha?”
A sra. Miller estava precariamente empoleirada no tamborete, fumando um cigarro. Sua rede de cabelo deslizara para o lado, e êos soltos pendiam a esmo pelo rosto. Os olhos estavam tolamente concentrados em nada, e as faces tinham manchas vermelhas, como se um tapa furioso tivesse deixado marcas permanentes.
“Tem aí um doce... um bolo?”
A sra. Miller bateu a cinza no tapete. Sua cabeça balançou de leve enquanto tentava ajustar o foco dos olhos. “Você prometeu ir embora se eu fizesse os sanduíches”, disse.
“Puxa, prometi, é?”
“Foi uma promessa, e eu estou cansada e não estou me sentindo nada bem.”
“Não precisa ficar chateada”, disse Miriam. “Estou só brincando.”
Pegou o casaco, pendurou-o no braço e ajeitou a boina na cabeça diante de um espelho. Em seguida se curvou bem perto da sra. Miller e sussurrou: “Me dê um beijo de boa-noite”.
“Por favor... prefiro não dar”, respondeu a sra. Miller.
Miriam ergueu um ombro, arqueou uma sobrancelha. “Como quiser”, disse, e seguiu direto para a  mesinha  de  café,  agarrou  o  vaso  que  continha  as  rosas  de  papel,  levou-o  até  o  local  onde  a superfície do chão estava vazia e arremessou-o para baixo. Vidros espalharam-se para todos os lados, e ela pisoteou o buquê.
Depois, lentamente, caminhou até a porta, mas, antes de fechá-la, olhou para trás na direção da sra. Miller com uma curiosidade marotamente ingênua. 

A sra. Miller passou o dia seguinte na cama, levantou-se uma vez para dar comida para o canário e beber uma xícara de chá; tirou a temperatura e não tinha febre, ainda assim seus sonhos estavam febrilmente agitados; o caráter desequilibrado dos sonhos perdurava mesmo enquanto ela êtava o teto com  os  olhos  bem  abertos,  deitada.  Um  sonho  se  mesclava  aos  outros,  como  um  tema vagamente  misterioso  numa  sinfonia  complicada,  e  as  cenas  que  retratava  eram  delineadas  de
forma incisiva, como que desenhadas por uma mão dotada de grande vigor: uma garotinha, com um vestido de noiva e uma grinalda de folhas, guiava um grande cortejo que descia a trilha de uma montanha, e no meio dessa gente reinava um silêncio fora do comum, até que uma mulher lá atrás perguntou:  “Para  onde  ela  está  nos  levando?”.  “Ninguém  sabe”,  respondeu  uma  velha  que marchava na frente. “Mas ela não é mesmo bonita?”, acrescentou uma terceira voz. “Não parece uma flor coberta pela geada?... Tão brilhante e branca.”
Terça-feira de manhã ela acordou sentindo-se melhor; fortes riscas de sol inclinando-se através das persianas  lançavam  uma  luz  estilhaçante  sobre  seus  devaneios  sadios.  Abriu  a  janela  para descobrir  um  dia  de  degelo,  ameno  como  na  primavera;  uma  leva  de  nuvens  novas  e  limpas encolhiam-se contra um céu vasto e azul, fora de estação; e por cima da linha baixa dos telhados ela conseguia avistar o rio e a fumaça que saía das chaminés dos rebocadores e se curvava ao vento morno. Um grande caminhão prateado arava a rua atravancada pela neve, seu motor ressoava no
ar com um zumbido.
Depois  de  arrumar  o  apartamento,  ela  foi  à  mercearia  descontar  um  cheque  e  seguiu  até  o Schrafft’s, onde tomou o café-da-manhã e bateu um papo descontraído com a garçonete. Ah, fazia um dia lindo, mais parecia um feriado — e seria uma grande bobagem ir para casa.
Tomou um ônibus na avenida Lexington e foi até a rua 86; ali resolveu fazer umas comprinhas. Não tinha a menor idéia do que queria ou do que precisava, mas andou sem rumo, atenta apenas aos passantes, enérgicos e preocupados, que lhe davam uma perturbadora sensação de isolamento. Foi enquanto aguardava na esquina da Terceira Avenida que viu o homem: um velho, de pernas arqueadas  e  curvado  debaixo  de  uma  braçada  de  pacotes  estufados;  usava  um  casaco  marrom
surrado e um boné xadrez. De repente se deu conta de que os dois, ele e ela, estavam trocando um sorriso; nada havia de amistoso naquele sorriso, eram só dois frios tremores de reconhecimento.
Mas ela teve a certeza de que nunca o tinha visto antes. Ele  estava  parado  junto  a  um  poste,  e,  quando  ela  atravessou  a  rua,  virou-se  e  a  seguiu. Continuou bem perto; pelo canto do olho, ela observava o reflexo dele oscilando nas vitrines das lojas.
Então,  no  meio  do  quarteirão,  parou  e  encarou-o.  Ele  também  parou  e  inclinou  a  cabeça, sorrindo. Mas o que ela poderia dizer? Ou fazer? Ali, em plena luz do dia, na rua 86? Era inútil, e, com desprezo por seu próprio desamparo, acelerou o passo.
Agora  a  Segunda  Avenida  é  uma  rua  desoladora,  feita  de  restos  e  detritos;  em  parte paralelepípedo, em parte asfalto, em parte cimento; e sua atmosfera de abandono é permanente. A sra. Miller  caminhou  cinco  quarteirões  sem  encontrar  ninguém,  e  durante  todo  o  tempo  o constante esmigalhar das passadas dele na neve soou próximo. E, quando ela chegou a um florista, o ruído ainda estava perto. Entrou depressa e olhou através da vidraça da porta enquanto o velho passava lá fora; ele mantinha os olhos fixo em frente, e não reduziu o ritmo dos passos, mas fez uma coisa estranha e reveladora: deu um leve toque no boné.

“Seis brancas, a senhora disse?”, perguntou o florista. “Sim”, respondeu ela. “Rosas brancas.” De lá, foi para uma loja de artigos de vidro e escolheu um vaso, supostamente um substituto para o que  Miriam  quebrara,  embora  o  preço  fosse  inaceitável  e  o  vaso  em  si  (pensou  ela)  fosse grotescamente  vulgar.  Mas  uma  série  de  compras  inexplicáveis  havia  começado,  como  que segundo um plano preestabelecido: um plano do qual ela não tinha o menor conhecimento ou controle.
Comprou  um  saco  de  cerejas  carameladas  e  num  lugar  chamado  Confeitaria  Knickerbocker pagou quarenta centavos por seis bolinhos de amêndoa.
Ao longo da última hora, o tempo tinha esfriado outra vez: como lentes embaçadas, nuvens de inverno lançavam uma sombra na frente do sol, e o esqueleto de um crepúsculo prematuro tingia o céu; uma névoa úmida misturada com o vento e com as vozes de algumas crianças que faziam algazarra  em  montes  de  neve  acumulados  nas  sarjetas  parecia  solitária  e  triste.  Logo  caiu  o primeiro floco, e, quando a sra. Miller chegou à casa de arenito pardo, a neve já caía numa tela ondulante e as pegadas sumiam logo depois de ser deixadas para trás.

 As rosas brancas foram dispostas de forma decorativa no vaso. As cerejas carameladas reluziam numa travessa de cerâmica. Os bolinhos de amêndoa, polvilhados com açúcar, aguardavam bem à mão. O canário batia as asas em seu poleiro e bicava uma barra de sementes.
Exatamente às cinco horas, a campainha tocou. A sra. Miller sabia quem era. A bainha do seu roupão ondulou enquanto ela atravessava o piso. “É você?”, perguntou.
“Claro”, respondeu Miriam; a palavra soou estridente e forte no vestíbulo. “Abra essa porta.”
“Vá embora”, disse a sra. Miller.
“Por favor, depressa... estou com um embrulho pesado.”
“Vá  embora”,  disse  a  sra.  Miller.  Voltou  para  a  sala,  acendeu  um  cigarro,  sentou-se  e calmamente ouviu a campainha; tocou, tocou, tocou. “É melhor ir embora. Não tenho a menor intenção de deixar você entrar.”
Dali  a  pouco  a  campainha  parou.  Durante  talvez  dez  minutos  a  sra.  Miller  não  se  mexeu. Depois, sem ouvir nenhum barulho, concluiu que Miriam tinha ido embora. Foi até a porta na ponta dos  pés  e  abriu  uma  frestinha;  Miriam  estava  meio  reclinada  em  cima  de  uma  caixa  de papelão com uma linda boneca francesa aninhada nos braços.
“Puxa, pensei que não viria nunca”, disse ela, em tom impaciente. “Tome, me ajude a levar isto para dentro, é terrivelmente pesado.”
Não foi um impulso semelhante a um encanto o que a sra. Miller sentiu, mas antes uma curiosa passividade; trouxe a caixa para dentro, e Miriam a boneca. Miriam se enroscou no sofá, sem se dar o trabalho de tirar o casaco e a boina, e ficou olhando desinteressada enquanto a sra. Miller largava a caixa no chão e se erguia, trêmula, tentando retomar o fôlego.
“Obrigada”, disse ela. Na luz do dia, parecia contraída e murcha, o cabelo menos luminoso. A boneca francesa que ela acarinhava usava uma requintada peruca empoada, e seus olhos de vidro apalermados procuravam consolo nos olhos de Miriam. “Tenho uma surpresa”, prosseguiu. “Olhe dentro da minha caixa.”
Ajoelhando, a sra. Miller separou as abas e tirou dali outra boneca; depois um vestido azul que ela lembrava ser aquele que Miriam usava na primeira noite em que se viram, no cinema; e do restante ela disse: “Tudo roupa. Por quê?”.
“Porque vim morar com a senhora”, respondeu Miriam, torcendo uma haste de cereja. “Que
gentileza a sua comprar cerejas para mim...”
“Mas você não pode! Pelo amor de Deus, vá embora, vá embora e me deixe sozinha!”
“... e rosas e bolinhos de amêndoa! Que generosidade maravilhosa! Sabe, estas cerejas estão uma delícia. O último lugar onde morei foi com um velho; ele era tremendamente pobre, e a gente nunca  tinha  coisas  boas  para  comer.  Mas  acho  que  aqui  vou  ser  feliz.”  Parou  um  pouco  para
aconchegar melhor a boneca. “Agora a senhora podia me mostrar onde vou pôr minhas coisas...”
O rosto da sra. Miller dissolveu-se numa máscara de linhas vermelhas e feias; ela começou a chorar, e foi um choro anormal, sem lágrimas, como se, tendo ficado muito tempo sem chorar, houvesse esquecido como fazê-lo. Cuidadosamente, recuou até tocar a porta.

* * *

Saiu tateante pelo vestíbulo e desceu a escada até o patamar inferior. Bateu freneticamente na porta do primeiro apartamento que encontrou; um homem baixo, de cabelo vermelho, atendeu, e ela  entrou,  empurrando-o  para  o  lado.  “Ora,  mas  que  diabo  é  isso?”,  exclamou  ele.  “Algum problema, querido?”, perguntou uma jovem que veio da cozinha, enxugando as mãos. E foi a ela que a sra. Miller se dirigiu.
“Escute”, gritou, “estou com vergonha de agir deste jeito, mas... bem, sou a sra. H. T. Miller e moro no andar de cima e...” Apertou as mãos contra o rosto. “É uma coisa tão absurda...”
A  mulher  levou-a  até  uma  cadeira,  enquanto  o  homem  fez  tilintar  moedas  no  bolso nervosamente. “E aí?”
“Moro no andar de cima, e tem uma garotinha que veio me visitar, e acho que estou com medo dela. Não quer ir embora, e eu não consigo obrigá-la a ir embora... ela vai fazer algo horrível. Já roubou meu camafeu, mas vai fazer algo pior... algo horrível!”
O homem perguntou: “É parente da senhora, é?”.
A sra. Miller balançou a cabeça. “Não sei quem ela é. Seu nome é Miriam, mas não sei quem ela é.”
“Tem de se acalmar, meu bem”, disse a mulher, afagando o braço da sra. Miller. “O Harry está aqui e vai falar com essa menina. Vá lá, querido.” E a sra. Miller disse: “A porta está aberta... 5A”.
Depois que o homem saiu, a mulher trouxe uma toalha e lavou o rosto da sra. Miller. “Você é muito  gentil”,  disse  a  sra.  Miller.  “Desculpe  por  agir  feito  uma  tola,  mas  é  que  essa  menina
malvada...”
“Claro, meu bem”, consolou a mulher. “Agora, é melhor se acalmar.”
A sra. Miller repousou a cabeça no meio do braço da mulher; ficou tão quieta que podia até dormir. A mulher virou o dial do rádio; um piano e uma voz rouca encheram o silêncio, e a mulher, batendo o pé no chão, marcava o ritmo muito bem. “Talvez a gente também devesse dar um pulo lá em cima”, disse.
“Não quero vê-la outra vez. Não quero nunca mais ficar perto dela.”
“Sei, mas o que a senhora devia ter feito era chamar a polícia.”
Logo ouviram o homem na escada. Ele entrou na sala com as sobrancelhas franzidas e coçando a nuca. “Não tem ninguém lá”, disse, sinceramente embaraçado. “Ela deve ter dado no pé.”
“Harry, você é uma besta”, declarou a mulher. “Ficamos aqui o tempo todo, e a gente teria visto se ela...” Parou de repente, pois o olhar do homem era penetrante.
“Olhei tudo”, respondeu, “e acontece que não tem ninguém lá em cima. Ninguém, entendeu?”
“Diga-me  uma  coisa”,  pediu  a  sra.  Miller,  levantando-se.  “Viu  uma  caixa  grande?  Ou  uma boneca?”
“Não, senhora, não vi.”
E a mulher, como se pronunciasse um veredicto, disse: “Puxa, quem diria...”.
  
A sra. Miller entrou com suavidade no seu apartamento; andou até o centro da sala e ficou ali absolutamente imóvel. Não, de certo modo, nada havia mudado: as rosas, os bolinhos e as cerejas estavam no mesmo lugar. Mas era uma sala vazia, mais vazia do que se a mobília e os objetos não estivessem presentes, sem vida e petrificados numa palidez fúnebre. O sofá avultava diante dela com uma estranheza nova: seu vazio tinha um significado que seria menos penetrante e aterrador se Miriam estivesse enroscada em cima dele. A sra. Miller olhou fixo para o espaço onde lembrava ter posto a caixa, e, por um momento, o tamborete rodopiou desesperadamente. E ela olhou pela janela; sem dúvida o rio era real, sem dúvida a neve estava caindo — só que ninguém podia ser testemunha fidedigna de coisa nenhuma: Miriam, ali, tão real — e, contudo, onde estava ela? Onde, onde?Como que se movendo num sonho, afundou numa cadeira. A sala estava perdendo a forma; estava escura e ficava mais escura ainda, e não se podia fazer nada; ela não conseguia erguer a mão para acender uma lâmpada.
De súbito, fechando os olhos, sentiu uma onda subir, como um mergulhador que emerge de uma profundidade maior, mais verde. Em horas de terror ou de imensa aflição, há momentos em que a mente aguarda como que uma revelação, enquanto uma meada de calma é urdida por cima do pensamento; é como o sono, ou um transe sobrenatural; e durante essa calmaria vem a consciência de uma  força  de  raciocínio  sereno:  bem,  e  se  ela  nunca  tiver  mesmo  conhecido  uma  garota chamada Miriam? E se ela ficou estupidamente assustada na rua? No fim, como tudo o mais, não tinha a menor importância. Pois a única coisa que perdeu para Miriam foi sua identidade, mas agora ela sabe que de novo encontrou a pessoa que morava nesses aposentos, que preparava suas próprias refeições, que tinha um canário, que era alguém em quem ela podia confiar e acreditar: a sra. H. T. Miller.
Enquanto ouvia atenta e satisfeita, percebeu um som duplo: uma gaveta de escrivaninha abriu e fechou; ela pareceu ter ouvido o barulho muito depois de ele terminar — o abrir e o fechar. Depois, aos poucos, a rispidez do som foi substituída pelo murmurar de um vestido de seda, e esse ruído, sutilmente  suave,  aproximava-se  cada  vez  mais  e  crescia  em  intensidade,  até  que  as  paredes tremeram com a vibração e a sala começou a ruir debaixo de uma onda de sussurros. A sra. Miller contraiu-se e abriu os olhos num olhar fixo e abismado.
“Olá”, disse Miriam.

[1945]

Tradução de Rubens Figueiredo