Durante muitos anos, a sra. H. T. Miller havia morado sozinha num apartamento confortável (dois quartos com quitinete) num prédio de arenito pardo, já reformado, perto do East River. Era viúva: a sra. H. T. Miller tinha uma pensão de valor bastante razoável. Sua renda era reduzida, não tinha amigas para conversar e raras vezes ia além da mercearia da esquina. Os demais moradores do prédio nunca pareciam perceber a presença dela: suas roupas eram comuns, o cabelo era cinza-escuro, preso e com ondulações naturais; ela não usava cosméticos, suas feições eram simples e discretas, e no último aniversário fizera sessenta e um anos. Suas atividades raramente eram espontâneas: conservava os dois quartos imaculados, fumava um cigarro de vez em quando, fazia a própria comida e cuidava de um canário.
Então conheceu Miriam. Nevava naquela noite. A sra. Miller tinha terminado de enxugar a louça do jantar e passava os olhos num jornal vespertino quando viu o anúncio de um filme que estava sendo exibido num cinema ali perto. O título soava bem, então ela se enfiou no seu casaco de pele de castor, amarrou as galochas e saiu do apartamento, deixando uma luz acesa no vestíbulo: nada a perturbava mais que a sensação de escuridão. A neve estava fina, caía de leve, nem deixava marcas na calçada. O vento que vinha do rio só batia nos cruzamentos. A sra. Miller se apressava, a cabeça curvada, distraída como uma toupeira que cava uma trilha que não sabe onde vai dar. Parou numa drugstore e comprou um pacotinho de balas de hortelã.
Uma fila comprida se estendia na frente da bilheteria; ela tomou seu lugar no fim da fila. Todos iam ter de esperar um pouco (uma voz cansada resmungou). A sra. Miller vasculhou sua bolsa de couro até juntar exatamente o dinheiro trocado para pagar o ingresso. A fila parecia não ter pressa nenhuma, e ela, olhando em volta para se distrair, de repente notou uma garotinha parada embaixo da marquise.
Tinha o cabelo mais comprido e mais estranho que a sra. Miller já vira; totalmente branco-prata, como o de um albino. Descia até a cintura em fios lisos e soltos. Era magra e de físico frágil. Havia uma elegância simples, especial, no seu jeito de se postar, com os polegares metidos nos bolsos de
um casaco bem justo de veludo cor de ameixa.
A sra. Miller sentiu-se estranhamente agitada e, quando a garotinha lançou um olhar na sua direção, sorriu com simpatia. A garotinha aproximou-se e disse: “A senhora se importa de me fazer um favor?”.
“Com todo o prazer, se eu puder”, respondeu a sra. Miller.
“Ah, é muito fácil. Eu só queria que a senhora comprasse um ingresso para mim; senão eles não me deixam entrar. Olhe aqui, tenho o dinheiro.” E graciosamente entregou à sra. Miller duas moedas de dez centavos e uma de cinco.
Entraram juntas para ver o filme. O lanterninha levou-as até a sala de espera; o filme ia terminar dali a vinte minutos.
“Eu me sinto como um criminoso de verdade”, disse com alegria a sra. Miller, enquanto sentava.
“Sabe, a gente está fazendo uma coisa contra a lei, não é? Tomara que eu não tenha feito nada de errado. Sua mãe sabe que você está aqui, querida? Sabe, não sabe?”
A garotinha não disse nada. Desabotoou o casaco e dobrou-o no colo. Seu vestido era chique e azul-escuro. Uma correntinha dourada pendia sobre o pescoço, e os dedos, delicados e harmoniosos, brincavam com ela. Enquanto a examinava com mais atenção, a sra. Miller concluiu que o traço verdadeiramente distintivo não era o cabelo, mas os olhos; eram castanhos, firmes, nada tinham de infantil e, por causa do tamanho, pareciam engolir o rosto miúdo.
A sra. Miller ofereceu uma bala de hortelã. “Qual é o seu nome, querida?”
“Miriam”, respondeu ela, como se, de um modo curioso, já se tratasse de uma informação familiar.
“Puxa, não é engraçado?... Meu nome também é Miriam. E nem é um nome tão comum assim. Mas não vá me dizer que seu sobrenome é Miller!”
“Só Miriam.”
“Mas não é engraçado?”
“Moderadamente”, respondeu Miriam, e girou a bala de hortelã na língua.
A sra. Miller corou e remexeu-se com desconforto. “Você tem um vocabulário bem vasto para uma garotinha.”
“É mesmo?”
“Bem, é, sim”, respondeu a sra. Miller, mudando apressadamente de assunto: “Gosta de ir ao cinema?”.
“Na verdade não sei”, respondeu Miriam. “Nunca vim ao cinema antes.”
Mulheres começaram a encher a sala de espera; o estrondo das bombas do cinejornal ressoava ao longe. A sra. Miller levantou-se, apertando a bolsa debaixo do braço. “Acho melhor me apressar se quiser pegar um bom lugar”, disse. “Foi bom conhecer você.”
Miriam respondeu com um levíssimo aceno da cabeça.
Nevou a semana inteira. Rodas e passos não faziam ruído na rua, como se a atividade de viver prosseguisse em segredo detrás de uma cortina embaçada mas impenetrável. No silêncio que caía lá fora, não havia céu nem terra, só neve pairando no vento, congelando no vidro da janela, resfriando os quartos, amortecendo e silenciando a cidade. Em todas as horas era necessário manter uma lâmpada acesa, e a sra. Miller perdeu a conta dos dias: sexta-feira não foi diferente de sábado, e no domingo ela foi à mercearia: fechada, é claro.
Naquela noite, fez ovos mexidos e sopa de tomate. Em seguida, depois de vestir um roupão de flanela e passar creme no rosto, enfiou-se na cama com uma bolsa de água quente sob os pés.
Estava lendo o Times quando a campainha tocou. No início, pensou que devia ser engano e quem quer que fosse iria embora. Mas tocou de novo várias vezes e virou um zumbido insistente. Ela olhou para o relógio: passava um pouco das onze horas; não parecia possível, ela sempre dormia às dez. Saiu da cama, atravessou depressa a sala, descalça. “Já vou, por favor, tenha paciência.” O trinco estava fechado; ela o girou para um lado e para o outro, e a campainha não parava nem um
instante. “Pare”, gritou. A lingueta cedeu, e ela abriu a porta dois centímetros.
“Que foi, pelo amor de Deus?”
“Olá”, disse Miriam.
“Ah... puxa, olá”, respondeu a sra. Miller, avançando hesitante para o vestíbulo. “Você é aquela garotinha.”
“Pensei que não fosse atender nunca mais, mas não tirei o dedo do botão; sabia que estava em casa. Não está contente de me ver?”
A sra. Miller não sabia o que dizer. Viu que Miriam vestia o mesmo casaco de veludo cor de ameixa e agora usava também uma boina para combinar; o cabelo branco estava preso em duas tranças reluzentes e enlaçadas na ponta com duas fitas brancas enormes.
“Já que esperei tanto tempo, a senhora podia pelo menos me deixar entrar”, disse a garotinha.
“É muito tarde...”
Miriam êtou-a com ar inexpressivo. “Que diferença isso faz? Deixe-me entrar. Está frio aqui fora, e estou com um vestido de seda por baixo.” Depois, com um gesto delicado, afastou a sra. Miller do caminho e entrou no apartamento.
Largou o casaco e a boina numa cadeira. Usava de fato um vestido de seda. Seda branca. Seda branca em fevereiro. A saia era lindamente pregueada, e as mangas eram compridas; a seda fazia um rumor suave enquanto ela andava pela sala. “Gostei da sua casa”, disse. “Gosto do tapete, azul é minha cor favorita.” Tocou numa rosa de papel num vaso sobre a mesinha de café. “Imitação”, comentou, desanimada. “Que triste. As imitações não são tristes?” Sentou-se no sofá, desdobrando a saia com capricho.
“O que você quer?”, perguntou a sra. Miller.
“Sente-se”, pediu Miriam. “Ver pessoas em pé me deixa nervosa.”
A sra. Miller afundou-se num tamborete acolchoado. “O que você quer?”, repetiu.
“Sabe, acho que não está contente por eu ter vindo.”
Pela segunda vez, a sra. Miller não teve o que responder; sua mão se mexeu vagamente. Miriam deu uma risadinha e recostou-se num monte de almofadas de algodão estampado. A sra. Miller observou que a garota estava menos pálida do que lembrava; as faces estavam coradas.
“Como soube onde eu morava?”
Miriam franziu as sobrancelhas. “Isso não está em questão. Qual é o seu nome? Qual é o meu?” “Mas não estou na lista telefônica.”
“Ah, vamos falar de outra coisa.”
A sra. Miller disse: “Sua mãe deve ser louca para deixar uma criança como você sair na rua a esta hora da noite, e ainda por cima com roupas tão ridículas. Ela deve estar doida”.
Miriam levantou-se e caminhou até um canto onde uma gaiola de passarinho coberta por uma capa pendia do teto numa corrente. Deu uma espiada por baixo da capa. “É um canário”, disse. “A senhora se importa se eu o acordar? Queria ouvi-lo cantar.”
“Deixe o Tommy em paz”, respondeu a sra. Miller, aflita. “Não se atreva a acordá-lo.”
“Claro”, respondeu Miriam. “Mas não vejo por que motivo não posso ouvi-lo cantar.” E depois:
“Tem alguma coisa para comer? Estou morrendo de fome! Podia ser leite e um sanduíche de geleia, já estava bom”.
“Olhe”, disse a sra. Miller, erguendo-se do tamborete, “olhe, se eu fizer uns sanduíches bem gostosos, você vai ser boazinha e vai embora para casa? Já passa de meia-noite, tenho certeza.”
“Está nevando”, censurou-a Miriam. “Está frio e escuro.”
“Bem, você não devia ter vindo aqui, para começo de conversa”, respondeu a sra. Miller, fazendo força para manter a voz sob controle. “Não posso fazer nada quanto ao tempo lá fora. Se quer algo para comer, vai ter de me prometer que vai embora.”
Miriam esfregou uma trança na bochecha. Os olhos ficaram pensativos, como se ponderassem a proposta. Ela se virou para a gaiola. “Muito bem”, disse, “prometo.”
Quantos anos ela tem? Dez? Onze? A sra. Miller, na cozinha, abriu um frasco de geléia de morango
e cortou quatro fatias de pão. Serviu um copo de leite e parou a fim de acender um cigarro. E por que
veio aqui? A mão tremeu quando ela segurou o fósforo, fascinada, até que queimou o dedo. O canário começou a cantar; cantar como cantava de manhã e em nenhuma outra hora. “Miriam”, ela chamou. “Miriam, eu falei para não perturbar o Tommy.” Não houve resposta. Chamou de novo; só ouviu o canário. Tragou o cigarro e descobriu que tinha acendido a ponta do filtro e — ah, puxa, não podia perder a calma.
Levou a comida numa bandeja, que pôs em cima da mesinha de café. Primeiro viu que a gaiola continuava coberta com a capa. E Tommy cantava. Teve uma sensação esquisita. E não havia ninguém na sala. A sra. Miller atravessou uma ante-sala que ia dar no quarto de dormir; na porta, ela quase ficou sem ar.
“O que está fazendo?”, perguntou.
Miriam ergueu os olhos para ela, e no seu olhar havia algo que não era comum. Estava de pé junto à escrivaninha, uma caixa de jóias aberta diante dela. Por um minuto, observou a sra. Miller,forçou seus olhos a se encontrarem e sorriu. “Não tem nada que preste aqui”, disse. “Mas gostei disto.” A mão suspendeu um broche de camafeu. “É chique.” “Eu acho... talvez fosse melhor pôr isso de volta no lugar”, disse a sra. Miller, sentindo de repente a necessidade de algum apoio. Encostou-se na ombreira da porta; a cabeça ficou insuportavelmente pesada; uma pressão acelerou o ritmo dos batimentos cardíacos. A luz pareceu piscar, com defeito. “Por favor, criança... um presente do meu marido...”
“Mas é lindo, e eu o quero”, disse Miriam. “Dê isso para mim.”
Quando a sra. Miller se aprumou, procurando formar uma frase capaz de salvar seu broche de algum jeito, ocorreu-lhe que não havia ninguém a quem pudesse recorrer; estava sozinha; um fato que havia muito não êgurava entre seus pensamentos. Sua simples ênfase era atordoante. Mas ali no seu próprio quarto, na cidade silenciada pela neve, havia provas que ela não podia ignorar ou, sabia disso com uma clareza assombrosa, provas às quais não podia resistir.
Miriam comeu avidamente, e, quando os sanduíches e o leite acabaram, seus dedos êzeram movimentos de teia de aranha pelo prato, recolhendo as migalhas. O camafeu brilhava na sua blusa, o perêl louro parecia um reëexo jocoso daquela que o usava. “Isso estava muito bom”, suspirou ela, “se bem que agora um bolinho de amêndoas ou umas cerejas seriam o ideal. Doces são adoráveis, a senhora não acha?”
A sra. Miller estava precariamente empoleirada no tamborete, fumando um cigarro. Sua rede de cabelo deslizara para o lado, e êos soltos pendiam a esmo pelo rosto. Os olhos estavam tolamente concentrados em nada, e as faces tinham manchas vermelhas, como se um tapa furioso tivesse deixado marcas permanentes.
“Tem aí um doce... um bolo?”
A sra. Miller bateu a cinza no tapete. Sua cabeça balançou de leve enquanto tentava ajustar o foco dos olhos. “Você prometeu ir embora se eu fizesse os sanduíches”, disse.
“Puxa, prometi, é?”
“Foi uma promessa, e eu estou cansada e não estou me sentindo nada bem.”
“Não precisa ficar chateada”, disse Miriam. “Estou só brincando.”
Pegou o casaco, pendurou-o no braço e ajeitou a boina na cabeça diante de um espelho. Em seguida se curvou bem perto da sra. Miller e sussurrou: “Me dê um beijo de boa-noite”.
“Por favor... prefiro não dar”, respondeu a sra. Miller.
Miriam ergueu um ombro, arqueou uma sobrancelha. “Como quiser”, disse, e seguiu direto para a mesinha de café, agarrou o vaso que continha as rosas de papel, levou-o até o local onde a superfície do chão estava vazia e arremessou-o para baixo. Vidros espalharam-se para todos os lados, e ela pisoteou o buquê.
Depois, lentamente, caminhou até a porta, mas, antes de fechá-la, olhou para trás na direção da sra. Miller com uma curiosidade marotamente ingênua.
A sra. Miller passou o dia seguinte na cama, levantou-se uma vez para dar comida para o canário e beber uma xícara de chá; tirou a temperatura e não tinha febre, ainda assim seus sonhos estavam febrilmente agitados; o caráter desequilibrado dos sonhos perdurava mesmo enquanto ela êtava o teto com os olhos bem abertos, deitada. Um sonho se mesclava aos outros, como um tema vagamente misterioso numa sinfonia complicada, e as cenas que retratava eram delineadas de
forma incisiva, como que desenhadas por uma mão dotada de grande vigor: uma garotinha, com um vestido de noiva e uma grinalda de folhas, guiava um grande cortejo que descia a trilha de uma montanha, e no meio dessa gente reinava um silêncio fora do comum, até que uma mulher lá atrás perguntou: “Para onde ela está nos levando?”. “Ninguém sabe”, respondeu uma velha que marchava na frente. “Mas ela não é mesmo bonita?”, acrescentou uma terceira voz. “Não parece uma flor coberta pela geada?... Tão brilhante e branca.”
Terça-feira de manhã ela acordou sentindo-se melhor; fortes riscas de sol inclinando-se através das persianas lançavam uma luz estilhaçante sobre seus devaneios sadios. Abriu a janela para descobrir um dia de degelo, ameno como na primavera; uma leva de nuvens novas e limpas encolhiam-se contra um céu vasto e azul, fora de estação; e por cima da linha baixa dos telhados ela conseguia avistar o rio e a fumaça que saía das chaminés dos rebocadores e se curvava ao vento morno. Um grande caminhão prateado arava a rua atravancada pela neve, seu motor ressoava no
ar com um zumbido.
Depois de arrumar o apartamento, ela foi à mercearia descontar um cheque e seguiu até o Schrafft’s, onde tomou o café-da-manhã e bateu um papo descontraído com a garçonete. Ah, fazia um dia lindo, mais parecia um feriado — e seria uma grande bobagem ir para casa.
Tomou um ônibus na avenida Lexington e foi até a rua 86; ali resolveu fazer umas comprinhas. Não tinha a menor idéia do que queria ou do que precisava, mas andou sem rumo, atenta apenas aos passantes, enérgicos e preocupados, que lhe davam uma perturbadora sensação de isolamento. Foi enquanto aguardava na esquina da Terceira Avenida que viu o homem: um velho, de pernas arqueadas e curvado debaixo de uma braçada de pacotes estufados; usava um casaco marrom
surrado e um boné xadrez. De repente se deu conta de que os dois, ele e ela, estavam trocando um sorriso; nada havia de amistoso naquele sorriso, eram só dois frios tremores de reconhecimento.
Mas ela teve a certeza de que nunca o tinha visto antes. Ele estava parado junto a um poste, e, quando ela atravessou a rua, virou-se e a seguiu. Continuou bem perto; pelo canto do olho, ela observava o reflexo dele oscilando nas vitrines das lojas.
Então, no meio do quarteirão, parou e encarou-o. Ele também parou e inclinou a cabeça, sorrindo. Mas o que ela poderia dizer? Ou fazer? Ali, em plena luz do dia, na rua 86? Era inútil, e, com desprezo por seu próprio desamparo, acelerou o passo.
Agora a Segunda Avenida é uma rua desoladora, feita de restos e detritos; em parte paralelepípedo, em parte asfalto, em parte cimento; e sua atmosfera de abandono é permanente. A sra. Miller caminhou cinco quarteirões sem encontrar ninguém, e durante todo o tempo o constante esmigalhar das passadas dele na neve soou próximo. E, quando ela chegou a um florista, o ruído ainda estava perto. Entrou depressa e olhou através da vidraça da porta enquanto o velho passava lá fora; ele mantinha os olhos fixo em frente, e não reduziu o ritmo dos passos, mas fez uma coisa estranha e reveladora: deu um leve toque no boné.
“Seis brancas, a senhora disse?”, perguntou o florista. “Sim”, respondeu ela. “Rosas brancas.” De lá, foi para uma loja de artigos de vidro e escolheu um vaso, supostamente um substituto para o que Miriam quebrara, embora o preço fosse inaceitável e o vaso em si (pensou ela) fosse grotescamente vulgar. Mas uma série de compras inexplicáveis havia começado, como que segundo um plano preestabelecido: um plano do qual ela não tinha o menor conhecimento ou controle.
Comprou um saco de cerejas carameladas e num lugar chamado Confeitaria Knickerbocker pagou quarenta centavos por seis bolinhos de amêndoa.
Ao longo da última hora, o tempo tinha esfriado outra vez: como lentes embaçadas, nuvens de inverno lançavam uma sombra na frente do sol, e o esqueleto de um crepúsculo prematuro tingia o céu; uma névoa úmida misturada com o vento e com as vozes de algumas crianças que faziam algazarra em montes de neve acumulados nas sarjetas parecia solitária e triste. Logo caiu o primeiro floco, e, quando a sra. Miller chegou à casa de arenito pardo, a neve já caía numa tela ondulante e as pegadas sumiam logo depois de ser deixadas para trás.
As rosas brancas foram dispostas de forma decorativa no vaso. As cerejas carameladas reluziam numa travessa de cerâmica. Os bolinhos de amêndoa, polvilhados com açúcar, aguardavam bem à mão. O canário batia as asas em seu poleiro e bicava uma barra de sementes.
Exatamente às cinco horas, a campainha tocou. A sra. Miller sabia quem era. A bainha do seu roupão ondulou enquanto ela atravessava o piso. “É você?”, perguntou.
“Claro”, respondeu Miriam; a palavra soou estridente e forte no vestíbulo. “Abra essa porta.”
“Vá embora”, disse a sra. Miller.
“Por favor, depressa... estou com um embrulho pesado.”
“Vá embora”, disse a sra. Miller. Voltou para a sala, acendeu um cigarro, sentou-se e calmamente ouviu a campainha; tocou, tocou, tocou. “É melhor ir embora. Não tenho a menor intenção de deixar você entrar.”
Dali a pouco a campainha parou. Durante talvez dez minutos a sra. Miller não se mexeu. Depois, sem ouvir nenhum barulho, concluiu que Miriam tinha ido embora. Foi até a porta na ponta dos pés e abriu uma frestinha; Miriam estava meio reclinada em cima de uma caixa de papelão com uma linda boneca francesa aninhada nos braços.
“Puxa, pensei que não viria nunca”, disse ela, em tom impaciente. “Tome, me ajude a levar isto para dentro, é terrivelmente pesado.”
Não foi um impulso semelhante a um encanto o que a sra. Miller sentiu, mas antes uma curiosa passividade; trouxe a caixa para dentro, e Miriam a boneca. Miriam se enroscou no sofá, sem se dar o trabalho de tirar o casaco e a boina, e ficou olhando desinteressada enquanto a sra. Miller largava a caixa no chão e se erguia, trêmula, tentando retomar o fôlego.
“Obrigada”, disse ela. Na luz do dia, parecia contraída e murcha, o cabelo menos luminoso. A boneca francesa que ela acarinhava usava uma requintada peruca empoada, e seus olhos de vidro apalermados procuravam consolo nos olhos de Miriam. “Tenho uma surpresa”, prosseguiu. “Olhe dentro da minha caixa.”
Ajoelhando, a sra. Miller separou as abas e tirou dali outra boneca; depois um vestido azul que ela lembrava ser aquele que Miriam usava na primeira noite em que se viram, no cinema; e do restante ela disse: “Tudo roupa. Por quê?”.
“Porque vim morar com a senhora”, respondeu Miriam, torcendo uma haste de cereja. “Que
gentileza a sua comprar cerejas para mim...”
“Mas você não pode! Pelo amor de Deus, vá embora, vá embora e me deixe sozinha!”
“... e rosas e bolinhos de amêndoa! Que generosidade maravilhosa! Sabe, estas cerejas estão uma delícia. O último lugar onde morei foi com um velho; ele era tremendamente pobre, e a gente nunca tinha coisas boas para comer. Mas acho que aqui vou ser feliz.” Parou um pouco para
aconchegar melhor a boneca. “Agora a senhora podia me mostrar onde vou pôr minhas coisas...”
O rosto da sra. Miller dissolveu-se numa máscara de linhas vermelhas e feias; ela começou a chorar, e foi um choro anormal, sem lágrimas, como se, tendo ficado muito tempo sem chorar, houvesse esquecido como fazê-lo. Cuidadosamente, recuou até tocar a porta.
* * *
Saiu tateante pelo vestíbulo e desceu a escada até o patamar inferior. Bateu freneticamente na porta do primeiro apartamento que encontrou; um homem baixo, de cabelo vermelho, atendeu, e ela entrou, empurrando-o para o lado. “Ora, mas que diabo é isso?”, exclamou ele. “Algum problema, querido?”, perguntou uma jovem que veio da cozinha, enxugando as mãos. E foi a ela que a sra. Miller se dirigiu.
“Escute”, gritou, “estou com vergonha de agir deste jeito, mas... bem, sou a sra. H. T. Miller e moro no andar de cima e...” Apertou as mãos contra o rosto. “É uma coisa tão absurda...”
A mulher levou-a até uma cadeira, enquanto o homem fez tilintar moedas no bolso nervosamente. “E aí?”
“Moro no andar de cima, e tem uma garotinha que veio me visitar, e acho que estou com medo dela. Não quer ir embora, e eu não consigo obrigá-la a ir embora... ela vai fazer algo horrível. Já roubou meu camafeu, mas vai fazer algo pior... algo horrível!”
O homem perguntou: “É parente da senhora, é?”.
A sra. Miller balançou a cabeça. “Não sei quem ela é. Seu nome é Miriam, mas não sei quem ela é.”
“Tem de se acalmar, meu bem”, disse a mulher, afagando o braço da sra. Miller. “O Harry está aqui e vai falar com essa menina. Vá lá, querido.” E a sra. Miller disse: “A porta está aberta... 5A”.
Depois que o homem saiu, a mulher trouxe uma toalha e lavou o rosto da sra. Miller. “Você é muito gentil”, disse a sra. Miller. “Desculpe por agir feito uma tola, mas é que essa menina
malvada...”
“Claro, meu bem”, consolou a mulher. “Agora, é melhor se acalmar.”
A sra. Miller repousou a cabeça no meio do braço da mulher; ficou tão quieta que podia até dormir. A mulher virou o dial do rádio; um piano e uma voz rouca encheram o silêncio, e a mulher, batendo o pé no chão, marcava o ritmo muito bem. “Talvez a gente também devesse dar um pulo lá em cima”, disse.
“Não quero vê-la outra vez. Não quero nunca mais ficar perto dela.”
“Sei, mas o que a senhora devia ter feito era chamar a polícia.”
Logo ouviram o homem na escada. Ele entrou na sala com as sobrancelhas franzidas e coçando a nuca. “Não tem ninguém lá”, disse, sinceramente embaraçado. “Ela deve ter dado no pé.”
“Harry, você é uma besta”, declarou a mulher. “Ficamos aqui o tempo todo, e a gente teria visto se ela...” Parou de repente, pois o olhar do homem era penetrante.
“Olhei tudo”, respondeu, “e acontece que não tem ninguém lá em cima. Ninguém, entendeu?”
“Diga-me uma coisa”, pediu a sra. Miller, levantando-se. “Viu uma caixa grande? Ou uma boneca?”
“Não, senhora, não vi.”
E a mulher, como se pronunciasse um veredicto, disse: “Puxa, quem diria...”.
A sra. Miller entrou com suavidade no seu apartamento; andou até o centro da sala e ficou ali absolutamente imóvel. Não, de certo modo, nada havia mudado: as rosas, os bolinhos e as cerejas estavam no mesmo lugar. Mas era uma sala vazia, mais vazia do que se a mobília e os objetos não estivessem presentes, sem vida e petrificados numa palidez fúnebre. O sofá avultava diante dela com uma estranheza nova: seu vazio tinha um significado que seria menos penetrante e aterrador se Miriam estivesse enroscada em cima dele. A sra. Miller olhou fixo para o espaço onde lembrava ter posto a caixa, e, por um momento, o tamborete rodopiou desesperadamente. E ela olhou pela janela; sem dúvida o rio era real, sem dúvida a neve estava caindo — só que ninguém podia ser testemunha fidedigna de coisa nenhuma: Miriam, ali, tão real — e, contudo, onde estava ela? Onde, onde?Como que se movendo num sonho, afundou numa cadeira. A sala estava perdendo a forma; estava escura e ficava mais escura ainda, e não se podia fazer nada; ela não conseguia erguer a mão para acender uma lâmpada.
De súbito, fechando os olhos, sentiu uma onda subir, como um mergulhador que emerge de uma profundidade maior, mais verde. Em horas de terror ou de imensa aflição, há momentos em que a mente aguarda como que uma revelação, enquanto uma meada de calma é urdida por cima do pensamento; é como o sono, ou um transe sobrenatural; e durante essa calmaria vem a consciência de uma força de raciocínio sereno: bem, e se ela nunca tiver mesmo conhecido uma garota chamada Miriam? E se ela ficou estupidamente assustada na rua? No fim, como tudo o mais, não tinha a menor importância. Pois a única coisa que perdeu para Miriam foi sua identidade, mas agora ela sabe que de novo encontrou a pessoa que morava nesses aposentos, que preparava suas próprias refeições, que tinha um canário, que era alguém em quem ela podia confiar e acreditar: a sra. H. T. Miller.
Enquanto ouvia atenta e satisfeita, percebeu um som duplo: uma gaveta de escrivaninha abriu e fechou; ela pareceu ter ouvido o barulho muito depois de ele terminar — o abrir e o fechar. Depois, aos poucos, a rispidez do som foi substituída pelo murmurar de um vestido de seda, e esse ruído, sutilmente suave, aproximava-se cada vez mais e crescia em intensidade, até que as paredes tremeram com a vibração e a sala começou a ruir debaixo de uma onda de sussurros. A sra. Miller contraiu-se e abriu os olhos num olhar fixo e abismado.
“Olá”, disse Miriam.
[1945]
Tradução de Rubens Figueiredo
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ResponderExcluirPor gentileza... Qual editora brasileira publicou esse conto?
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